questões geopolíticas
OS BRAÇOS BRASILEIROS DA
DESINFORMAÇÃO RUSSA
Estudo
de organização britânica identifica pessoas e entidades que têm promovido no
país o programa político de Putin e seu guru, Aleksandr Dugin
Nathalia Watkins e Cristina
Tardáguila 28 fev 2024_09h31
Océu sobre Yablonovo,
cidadezinha russa situada a 20 km da fronteira com a Ucrânia, estava cinza na
manhã do último dia 24 de janeiro quando um avião militar do tipo Iliyushin
IL-76, herança da era soviética, surgiu no horizonte envolto numa estranha
nuvem de fumaça, girou em torno de seu próprio eixo, embicou para baixo e, ao
tocar o chão nevado, fez surgir uma bola de fogo que pintou o céu de
laranja e preto.
“Leonid, na sua direção!
Cacete!”, exclamou em russo uma das testemunhas do acidente, uma mulher que
parecia falar ao telefone com alguém que estava prestes a ser atingido pelo
avião. Naquela manhã, ela foi a única pessoa que conseguiu filmar o trajeto
final da aeronave. Estava na esquina da rua central da pequena vila, um povoado
fundado no início do século XVII que hoje tem cerca de 2 mil habitantes. A
gravação que a mulher não identificada fez tem cerca de 30 segundos de duração
e pouco revela sobre o que ocorreu. Só não é possível confirmar, a partir dela,
se o IL-76 caiu por acidente ou foi derrubado.
“Muitos saíram às ruas [para ver o que tinha
acontecido],
mas ele [o
avião] caiu
muito longe, no meio da floresta”, disse uma moradora à agência de notícias
estatal russa Ria Novosti. Na mesma reportagem, um homem foi mais preciso: “O avião
caiu uns 3 km mata adentro.”
Embora houvesse muitas
dúvidas sobre a queda, impossíveis de serem esclarecidas pelos relatos dos
moradores de Yablonovo, Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da
Rússia, parecia não ter nenhuma. No fim daquela manhã, em uma coletiva de
imprensa convocada às pressas no âmbito da ONU, ele afirmou sem pestanejar
que a explosão do avião militar havia sido um “ataque terrorista” cometido pela
Ucrânia que deixara 74 mortos. Entre as vítimas, enfatizou o chanceler, estariam
três oficiais russos, seis membros da tripulação e nada menos do que 65
militares ucranianos.
Ainda de acordo com Lavrov,
o grupo de ucranianos teria sido preso pelas Forças Armadas russas na guerra
que se arrasta há dois anos e, naquela manhã, estaria a caminho de Kiev como
parte de um acordo de troca de prisioneiros. “Mas, em vez dessa troca, o lado
ucraniano lançou um míssil de defesa aérea a partir da região de
Kharkov”, disse o diplomata, com os dedos cruzados e os cotovelos
fincados na mesa na ONU. “Miravam o avião e acabaram provocando uma queda
fatal.” Ajustando os óculos de aro fino, Lavrov emendou, dizendo que queria que
o Conselho de Segurança da ONU realizasse um encontro urgente – às três da
tarde (horário de Nova York) daquele mesmo dia – e alfinetou a França, país que
presidia o órgão. “Espero que as autoridades agendem essa sessão.”
De maneira quase simultânea,
na região de Belgorod, onde fica a minúscula Yablonovo, canais
de Telegram, o aplicativo de mensagens mais popular da Rússia, foram
inundados de mensagens, fotos, áudios e vídeos. Usuários davam notícias de que
equipes trabalhavam no local do acidente, que pedaços do avião podiam ser
vistos a 5 km do ponto da queda, que dezenas de janelas haviam sido
estraçalhadas na cidade, e que, milagrosamente, a Igreja de Demétrio de
Tessalônica, único ponto turístico dali, tinha ficado intacta. A fonte dessa
última informação era o líder religioso da cidade, identificado como padre
George Borovikov.
Viralizaram nesses canais de
Telegram capturas de tela do site Ukrainska Pravda – que foi banido pela Rússia, mas é acessível via VPN
(ferramenta que permite ao usuário de internet mascarar a localização de seu
IP, de modo a acessar sites que não estão disponíveis ou são proibidos no país
onde reside). Nessas imagens, lia-se que, segundo membros não identificados das
Forças Armadas ucranianas, os militares da Ucrânia tinham, sim, derrubado o
IL-76. O país teria obtido informações de que a aeronave russa estaria
transportando mísseis antiaéreos do tipo S-300, razão pela qual a Ucrânia a
teria abatido.
As capturas de tela eram
verdadeiras. Entretanto, a informação sobre o suposto envolvimento de Kiev na
explosão do IL-76 foi alterada pelo Ukrainska Pravda minutos depois de ser postada. Seguindo as melhores práticas do
jornalismo, o site inseriu em seu texto uma nota de “correção” e explicou a
mudança feita. Aparentemente, a fonte da reportagem voltara atrás e já não
confirmava qualquer participação da Ucrânia no incidente com o avião militar
russo.
Resultado: capturas de tela
aterrissaram nos grupos de Telegram com o primeiro e o segundo textos do Ukrainska Pravda, jogando milhares de
pessoas nos labirintos das teorias da conspiração. Em poucas horas, dezenas de
postagens feitas no Telegram misturavam críticas ao jornalismo e teorias
geopolíticas com pouco lastro na realidade.
Ao iniciar sua cobertura
sobre a queda do avião militar, a agência de notícias russa Interfax publicou outro link
que também se popularizou no Telegram. Nele, o militar da reserva Andrei
Kartapolov, presidente do comitê de defesa da Duma (o Parlamento russo), dizia
que o IL-76 havia sido abatido por “três mísseis Patriot ou Iris-T”. Segundo
Kartapolov, os mísseis usados pela Ucrânia teriam vindo dos Estados Unidos e
comprovariam o uso inadequado do apoio que o Ocidente tem dado à Ucrânia para
que o país se defenda nessa guerra, batizada pelo presidente Vladimir Putin de
“operação especial”.
Foi então que o governo de
Volodymyr Zelensky partiu para o contra-ataque. Numa transmissão ao vivo feita
pela internet na mesma noite de 24 de janeiro, o presidente ucraniano acusou
Moscou de estar “jogando com a vida de prisioneiros ucranianos, com os
sentimentos daqueles que os amam e com a emoção da sociedade ucraniana”.
“A Ucrânia está trabalhando
para saber o que aconteceu com os prisioneiros de guerra, e o serviço de
segurança ucraniano está investigando as circunstâncias [da queda do IL-76]”, enfatizou Zelensky, com
o nariz a poucos centímetros da câmera. “Eu instruí nosso ministro de Relações
Exteriores a dizer a nossos apoiadores [no exterior] que queremos uma data para
a abertura de uma investigação internacional sobre esse caso.”
Também naquela noite, a
inteligência ucraniana fez chegar à imprensa mundial duas informações que
considerava vitais para sua defesa. Kiev confirmou que negociava uma troca de
prisioneiros com Moscou (algo que acabou ocorrendo, sem qualquer incidente,
em 31 de janeiro), mas enfatizou que, até o dia da queda do IL-76, não
sabia quantos presos seriam trocados, que aviões poderiam ser usados no
processo e que rotas eles tomariam.
Numa publicação feita no Telegram,
a inteligência ucraniana negou ter recebido qualquer pedido da Rússia para
garantir a segurança do espaço aéreo sobre Belgorod em 24 de janeiro e fez
questão de destacar que esse tipo de informação, quando efetivamente passada,
costuma ser cumprida à risca pelas partes. Até aquele dia, segundo Kiev, ao
menos outros cinquenta episódios de troca de prisioneiros já haviam sido
concluídos, sem maiores problemas, dentro do mesmo conflito com a Rússia. Não
haveria, portanto, espaço para erro. Com isso, a Ucrânia dava a entender que,
se a Rússia tinha realmente decidido devolver prisioneiros naquela manhã fria
de quarta-feira, não havia combinado absolutamente nada com ela. Tratava-se de
uma ação unilateral.
Uma semana passou, e o
empurra-empurra sobre a culpa pela queda do IL-76 persistiu. Em 1º de
fevereiro, os ucranianos colocaram um porta-voz da inteligência na tevê para
cutucar os russos com vara curta.
Andriy Yusov, um político
ativista de 41 anos que lembra o ex-ministro da Justiça Anderson Torres e desde
2022 ocupa o cargo de porta-voz do Ministério da Defesa da Ucrânia,
reivindicou, em cadeia nacional, que os restos mortais dos prisioneiros
supostamente mortos no avião fossem devolvidos a seu país. Se eram realmente 65
pessoas, alguns corpos com certeza teriam sido recuperados. Precisariam, então,
ser identificados e entregues a seus familiares.
No dia seguinte, o Kremlin
deu o troco. Mandou seu porta-voz, Dmitry Peskov, dizer à agência de notícias
RIA Novosti que Moscou estranhava muito aquela cobrança pública, já que jamais
havia recebido de Kiev qualquer pedido referente à repatriação dos restos
mortais dos prisioneiros mortos em 24 de janeiro. Peskov não disse à RIA
Novosti se atenderia ou não a solicitação de Yusov. Encerrou a entrevista sem
se comprometer com nada.
Até a primeira semana de
fevereiro, havia dúvidas consideráveis sobre o nome dos 65 prisioneiros de
guerra supostamente mortos na queda do IL-76 – e uma poderosa personalidade da
mídia russa estava associada a tais incertezas. Margarita Simonyan, uma jornalista
de 43 anos, olhos tristonhos e sobrancelhas bem demarcadas, havia divulgado, no
próprio dia 24 de janeiro, uma lista com os nomes dos possíveis mortos no
IL-76. Ela é a editora-chefe dos veículos estatais russos Russia Today Rossiya
Segodnia/Sputnik, ambos muito próximos ao Kremlin, mas publicou a lista em seu
próprio canal de Telegram. Contumaz propagadora de informações falsas ou
distorcidas, Simonyan é tratada pela mídia ocidental como “propagandista”, e
seu nome aparece em praticamente todas as listas de sanções aplicadas a
cidadãos russos. Daí o mundo ter duvidado de sua lista de mortos, e diversas
equipes de jornalistas terem sido deslocadas para tentar confirmar – em vão –
as informações divulgadas por ela.
O projeto independente Schemes, da Rádio Free Europe, chancelou a lista de
oficiais russos mortos na queda, entrevistando familiares e rastreando
postagens de luto em redes sociais. Não obteve, no entanto, quaisquer dados
sobre os supostos prisioneiros ucranianos. O site de fact-checking Suspilne, baseado na Ucrânia, conseguiu confirmar que
os ucranianos listados por Simonyan realmente eram prisioneiros de guerra, mas
não foi capaz de atestar suas mortes.
Diretor de projetos especiais
do Centro para Resiliência da Informação (CIR, na sigla em inglês), o britânico
Tom Southern é um homem calvo, de olhos claros, que carrega no currículo uma
graduação em direito pela Universidade de Surrey e uma pós-graduação na mesma
área pela Universidade de Londres. Há dez anos ele estuda as falsidades
impulsionadas pela Rússia, e seus olhos brilham quando lhe perguntam sobre
isso.
Em um encontro que uniu
especialistas em desinformação, em meados de janeiro, Southern resumiu os
objetivos da Rússia ao lançar mão da desinformação como estratégia geopolítica:
A
Rússia busca dividir as pessoas, as nações, as ideias. Opõe o universo
doméstico ao estrangeiro. Vende a ideia de que o que há na Rússia é melhor do
que em qualquer outro lugar. Insiste que o resto do mundo está errando em tudo
o que faz. Classifica como inimigo, traidor, louco ou idiota quem pensa
diferente. E faz tudo isso de forma simultânea nos campos político,
diplomático, militar, social, midiático e até mesmo religioso. Não é fácil
acompanhar.
Depois de dez anos dedicados
ao estudo da desinformação russa, Southern certificou-se de que ela está por
todos os lados. Ele disse à Piauí que “a Rússia investiu massivamente em
redes humanas e digitais que funcionam em português”. Também alertou para o
fato de que “essas redes passaram despercebidas durante décadas, inclusive no
Brasil”.
Southern conta que a base
teórica para a manipulação da realidade como política de Estado na Rússia
moderna antecede Putin e é obra do político e empresário de mídia Vladislav
Surkov, hoje com 59 anos. Ele começou sua vida profissional no meio das artes e
foi um dos primeiros oligarcas a colocar um grupo de comunicação inteiro a
serviço do Kremlin. Entre 2011 e 2013, foi vice-primeiro-ministro da Rússia.
Nos sete anos seguintes, serviu de conselheiro e assistente de Putin.
Possivelmente um dos
mentirosos mais renomados da Rússia pós-soviética, Surkov se destacou na
política por sua habilidade para usar a manipulação psicológica que aprendeu em
um curso de direção teatral (que não chegou a terminar). “A ideia de Surkov era
não apenas manipular pessoas, e sim ir mais a fundo. Era mexer com a percepção
delas sobre a realidade de modo que nunca tenham total certeza do que realmente
está acontecendo. E isso é algo difícil de conter, porque é simplesmente bem
difícil de definir”, disse Southern.
No Brasil, as ideias de
Surkov reverberaram menos que as do doutrinador político de extrema direita
Aleksandr Dugin, considerado o guru de Putin e do expansionismo russo. Em 2002, ele fundou o partido Eurásia, nome que alude à
sua crença de que a Rússia tem um destino tão imenso que não poderia ser
enquadrada geopoliticamente nem na Europa nem na Ásia. Na formulação de sua Quarta
Teoria Política, é a Rússia que ele destaca como melhor posicionada para
exercer um papel de liderança no mundo atual, multipolarizado e regido por uma
nova ordem que substituiria as três ideologias dominantes do século XX –
liberalismo, fascismo e comunismo.
É baseado nesse enredo que
Dugin justifica a invasão da Ucrânia. O conflito seria, na verdade, o resultado
dos esforços de Moscou para evitar que prevaleça a dominância do Ocidente
(leia-se, dos Estados Unidos) no mundo multipolarizado. Para ele, a invasão da
Ucrânia é como uma missão divina ou sobrenatural, o “início da luta contra
Satã”, como disse à revista britânica The Spectator, em janeiro passado. A
mesma lógica valeria para eventuais conflitos entre China e Taiwan, entre as
Coreias ou mesmo para a guerra entre Israel e o Hamas, pressupondo que por
trás de um dos polos dessas disputas estão os Estados Unidos, buscando impedir
a multiplicação das lideranças no mundo. No caso específico de Israel, Dugin
enxerga o atual conflito com o Hamas como um caminho para que o país deixe de
ser um fantoche dos Estados Unidos, dando também espaço ao mundo multipolar.
Dugin começou a investir no
Brasil a partir de um debate online (que virou livro) com o astrólogo e
polemista Olavo de Carvalho. O guru de Putin esteve por duas vezes no país,
onde participou de diversos eventos acadêmicos. Estudo feito por
pesquisadores do CIR identificou dezenove pesquisadores, acadêmicos e
professores em ao menos seis universidades e escolas militares brasileiras que
têm promovido as ideias de Dugin. São pessoas ligadas à USP, à Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e à Escola Superior de Guerra (ESG).
Em 2014, com o apoio de duas
pessoas ligadas à USP – um professor e uma pesquisadora afiliada – , Dugin
inaugurou em São Paulo o Centro de Estudos da Multipolaridade (CEM, hoje
desativado), que chegou a reunir 2 mil pessoas, entre elas, a filha do músico Djavan.
Em abril de 2022, já durante
a guerra na Ucrânia, professores da Uerj e pesquisadores afiliados à
universidade anunciaram que Dugin participaria – pela quarta vez – de um
evento, que acabou cancelado, devido a críticas e protestos. Segundo os pesquisadores
do CIR, há uma estreita ligação entre o Laboratório de Estudos Políticos de
Defesa e Segurança Pública, da Uerj, e o Laboratório de Segurança Internacional
e Defesa Nacional (Labsden), da ESG. Frequentemente, eventos de uma das
instituições são promovidos e prestigiados por pesquisadores da outra.
Em abril de 2023, por
exemplo, quando o jornal da ESG, que é administrada pelo Ministério da Defesa,
fez uma edição sobre a guerra na Ucrânia, deu espaço para um artigo de Dugin de
quinze páginas, que reverberou no Laboratório de Estudos de Defesa e Segurança
Pública. O texto, intitulado O Segundo Mundo, a semiperiferia e o estado-civilização na
teoria do mundo multipolar, é uma tentativa de convencer o Brasil a apoiar a nova ordem
mundial postulada pelo guru de Putin.
Fora do eixo Rio-São Paulo
foram localizadas ainda outras duas conexões de Dugin com universitários
brasileiros. Membros da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizaram ao menos dois eventos com ele,
ambos financiados pelo Alexander Gorchakov Public Diplomacy Fund. Todas as
traduções de Dugin no Brasil são feitas por Uriel Irigaray Araújo, doutorando
em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB), que ganhou popularidade
entre os seguidores do guru ao entrevistá-lo em 2020.
No mundo virtual, Dugin e
toda desinformação russa também chegam aos brasileiros por meio das redes
sociais. Entre novembro e dezembro de 2023, pesquisadores do CIR coletaram
dados públicos sobre as conversas travadas em português em 31 canais do Telegram e identificaram que narrativas
falsas disseminadas pelo guru e pelo Kremlin não encontram ali qualquer
barreira. Justificativas estapafúrdias para a guerra na Ucrânia e insinuações
de que Kiev leva a cabo um genocídio se misturam com postagens homofóbicas
alinhadas com a política de Putin.
Quando o mundo assistiu ao
massacre de civis em Bucha, cidade a noroeste de Kiev, os canais de Telegram em
português não só aderiram ao discurso de Moscou negando qualquer
responsabilidade pelo ocorrido como o difundiram. No Telegram, a Sputnik Brasil
postou que as acusações que atribuíam à Rússia as dezenas de corpos filmadas e
fotografadas no local eram “completamente infundadas”, uma espécie de “conto da
carochinha”. Num canal de Telegram com 37,6 mil inscritos, usuários concordavam
que o “suposto massacre de Bucha é uma fake News das televisões ocidentais”. E comemoravam que a Embaixada da
Rússia no Brasil havia se somado à conversa, negando que tivesse ocorrido um
massacre na cidade ucraniana. Em dezembro de 2022, usando imagens de câmeras de
segurança e registros de fontes governamentais, o New York Times mostrou que o massacre em
Bucha foi cometido, sim, por tropas russas. Soldados de Putin foram flagrados
interrogando e executando homens desarmados e crianças.
Aletã Nika Aleksejeva e o
ucraniano Roman Osadchuk são bolsistas do think tank americano Atlantic
Council e estudam como a Rússia tem usado a desinformação para influenciar no
entendimento global sobre a guerra com a Ucrânia. Em fevereiro de 2023, quando
o conflito entre os dois países fez um ano, Aleksejeva e Osadchuk se uniram
numa transmissão ao vivo e compartilharam algumas de suas conclusões.
Aleksejeva analisou mais de
10 mil publicações feitas por catorze meios de comunicação pró-Kremlin nos
setenta dias que antecederam a invasão do território ucraniano. No texto
intitulado Narrative
Warfare,
ela afirma que a mídia pró-Putin não só impulsionou flagrantes falsidades
alinhadas com os interesses do presidente como também pavimentou o apoio
popular ao Kremlin na região. Para fazê-lo, a imprensa pró-Kremlin martelou
cinco narrativas absolutamente falsas. Publicou textos dizendo que “a Rússia só
queria paz para a região”, que “tem a obrigação moral de proteger a segurança”
daquela parte do mundo, que “a Ucrânia é um país agressivo” e “o Ocidente
estaria criando tensões na região” de própósito. Alekseveja também achou
centenas de publicações acusando a Ucrânia de ser “uma marionete do Ocidente”,
que Kiev teria armas de destruição em massa e o governo do judeu Zelensky
seria, na verdade, uma junta nazista.
No evento do Atlantic
Council, Osadchuk, por sua vez, demonstrou que o Kremlin distribuiu
desinformação sob medida depois da invasão da Ucrânia. Para ganhar adeptos na
Polônia, por exemplo, a Rússia impulsionou postagens que promoviam um possível
atrito entre poloneses e refugiados ucranianos. Na França, espalhou rumores de
que as armas dadas por Paris a Kiev estariam sendo revendidas no mercado negro
pelos ucranianos, o que faria deles parceiros pouco confiáveis. Na Geórgia, país
que tentava entrar na União Europeia, os russos disseminaram a ideia de que, se
o país apoiasse a Ucrânia, não teria paz e, em consequência, não seria aceito
no bloco europeu. Era melhor que a Geórgia ficasse afastada do conflito.
Em Undermining Ukraine Minando a Ucrânia),
Osadchuk mostra que Moscou também não se esqueceu do Sul global. Na África do
Sul, diplomatas russos fizeram tuítes acusando a embaixada ucraniana de
recrutar mercenários na região (o que era falso). Contas russas também
impulsionaram, em 4 de março de 2022, a hashtag #IStandWithPutin (Eu estou com
Putin), espalhando a ideia de que os ucranianos são racistas. Na imprensa dos
países latino-americanos de língua espanhola, Osadchuk observou que diplomatas
russos difundiam desinformação. Fizeram pedidos diretos de desmilitarização e
de “desnazificação” da Ucrânia, em “reportagens” da Russia Today e do Sputnik News, em espanhol, que
viralizaram entre os latino-americanos.
Até a publicação deste texto,
nenhuma autoridade independente havia sido capaz de ir a Yablonovo investigar a
queda do avião, validar a lista final de mortos e determinar de quem foi a
culpa pelo incidente. Não havia confirmação sequer da presença de ucranianos no
voo. Com isso, uma velha expressão voltou a circular nas conversas entre civis
russos e ucranianos: o episódio envolvendo aquele IL-76 com certeza era o mais
novo caso de vranyo.
Quem fala ou estuda
a língua russa sabe que há dois verbos com o significado de “mentir”: lgat e vrat. O primeiro significa
mentir de fato. O segundo tem uma carga pejorativa e de deboche, e significa
mentir sobre algo que o interlocutor não levará a sério (nem como mentira).
Vranyo é um substantivo derivado do
verbo vrat. Numa adaptação moderna, é
uma versão russa para a fake News ocidental, mas anabolizada e institucionalizada. É uma mentira
descarada, dita sem nenhuma pretensão de que alguém acredite nela: você sabe
que eu estou mentindo, e eu sei que você sabe que eu estou mentindo. Você sabe
que eu sei que você sabe que eu estou mentindo, mas continua mentindo mesmo
assim. Então você continua me ouvindo atentamente e, ainda por cima, toma notas
do que eu estou dizendo, como se fosse coisa séria.
Em dezembro de 2011, por
exemplo, o canal de televisão russo Rossiya 24 transmitiu ao vivo os resultados
da última pesquisa de intenção de voto para as eleições parlamentares de
Rostov-on-Don, no Sul da Rússia. Atrás da apresentadora, uma jovem de perfil
delgado e cabelos loiros, havia um telão que mostrava os nomes dos vários
partidos em disputa e as respectivas pontuações percentuais obtidas na
pesquisa. Tudo estaria correto na cena não fosse o fato de que, somados, os
números supostamente obtidos pela coligação pró-Kremlin chegavam à inimaginável
marca de 146% das intenções de voto. Erro do infografista? De forma alguma. A
mesma cena – um caso clássico do vranyo – tem se repetido sistematicamente na tevê russa desde então.
Alguns russos estão tão habituados a isso que chegam a pensar que se trata de
uma piada ou ironia dos jornalistas de plantão, não uma tática desinformativa.
Como em outras partes do
mundo, na Rússia a desinformação também é prática antiga e recurso usado nos
mais diversos cenários. No século XVIII, por exemplo, Grigory Potemkin criou
vilas de fachada para que sua amada, a imperatriz Catarina, a Grande,
acreditasse que a conquista da Crimeia havia sido bem-sucedida. Por trás das
fachadas, não havia nada. Quando entrevistamos russos e estudiosos da Rússia
sobre esse assunto, encontramos um ponto de interrogação. Enquanto uns garantem
que a aldeia de Potemkin existiu, outros dizem que elas eram lorotas – um vranyo de primeira. Fato é
que a expressão “vilas de Potemkin” aparece em alguns idiomas (inclusive o
português) para designar obras de fachada. Os Estados Unidos já fizeram uso
dela para se referir a feitos da China, da Coreia do Norte ou do Irã.
No século XIX, a arte de
desinformar já estava tão enraizada entre os russos que Dostoiévski resolveu
debater o assunto em uma de suas obras-primas. Em O Idiota, o Príncipe Míchkin, um
epilético que retorna à Rússia depois de ter passado anos vivendo num sanatório
suíço, divaga sobre como a vida pode ser muito melhor quando substituímos as
verdades miseráveis do nosso dia a dia por fatos fantásticos. Para o
personagem, imaginar uma realidade alternativa, difundi-la a torto e a direito
e conseguir que todos acreditem nela é bem mais divertido e belo do que viver
os dias cinzentos do nosso cotidiano. Quem diria o contrário?
É fácil ver como o sofisma
de Míchkin se encaixa em episódios bem mais mundanos vindos da Rússia. No dia 7
de fevereiro de 2014, quando um dos aros olímpicos iluminados não se abriu para
formar na tela da tevê russa o símbolo dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014,
realizados na cidade de Sochi, o produtor do evento nem piscou. Substituiu a
cena falha por outra que havia sido gravada no ensaio. Com essa mentirinha
tele-esportiva, em vez de entrar para a história como um desastre miserável, a
festa olímpica de Sochi virou uma fantástica memória (pelo menos para os
cidadãos russos).
Na política externa, a
negação russa dos fatos foi levada ao extremo pelas mãos do diplomata Andrey
Gromyko, um dos idealizadores da ONU. Conhecido como “Mr. Nyet (Senhor não)” por ter
exercido mais de 25 direitos a veto como representante da União Soviética na
organização, Gromyko também tentou engabelar John Kennedy durante a crise
dos mísseis cubanos. Numa reunião realizada com o presidente americano pouco
depois de serem obtidas evidências fotográficas de que os soviéticos realmente
haviam deposto mísseis nucleares em bases militares de Cuba, Gromyko disse que
seu país jamais seria uma ameaça aos Estados Unidos e que não havia motivos
para se preocupar com seu país. Em suas memórias, Gromyko completa que em
nenhum momento durante aquela conversa Kennedy perguntou sobre a existência de
mísseis soviéticos em Cuba. “Consequentemente não havia nenhuma necessidade de
eu dizer se eles estavam ou não estavam lá”, acrescenta o diplomata, que depois
foi presidente da URSS (entre 1985 e 1988).
Identificar a desinformação
russa no Telegram vai além da análise da narrativa. Passa também pelo estilo da
escrita comumente usada pelos teóricos da conspiração. Os desinformadores que
atuam a favor do Kremlin em português costumam abusar, por exemplo, das
chamadas estratégias de revelação. Usam, com excessiva frequência, frases como
“conheça a verdadeira história”. Outra maneira de identificar as campanhas de
influência russa são erros gramaticais, escolha de palavras pouco comuns na
língua portuguesa, uso de termos mal traduzidos e formalidades inadequadas, que
indicam uso de tradução automatizada, típico recurso de quem quer inundar as
redes o mais rápido possível, replicando conteúdos de outros idiomas.
Em 30 de novembro de 2023,
uma postagem feita por um administrador de canal dizia o seguinte: “A julgar
pela fotografia de Tinkov, a descrição que ele deu ao presidente russo lhe convém melhor.” A frase, possivelmente
traduzida automaticamente, soa estranha para o estilo coloquial das redes
sociais. Em outra, o administrador afirmou que “imagens SAR de satélite, ou
imagens de radar, mostram claramente como as Forças Armadas
Russas concentraram sistemas de guerra electrónica tão poderosos nas
baías de Sebastopol que criam iluminação nos sensores dos satélites.” O termo “eletrônica”
foi grafado em espanhol.
No X (antigo Twitter), o
grupo pró-Kremlin que faz mais barulho em língua portuguesa é a Nova
Resistência (NR), tachado pelo Departamento de Estado dos Estados
Unidos como uma organização neofascista. Criada no Rio de Janeiro em 2015,
a NR diz contar com 250 militantes e estar presente em vinte estados
brasileiros. Seu logo mostra uma estrela verde com a sigla do movimento escrita
em preto.
A NR publica no X com
frequência. Em seus posts sobre a guerra na Ucrânia, repete que “a mídia
internacional retrata a operação especial russa como uma ‘agressão
injustificada’”, mas que ela é, na verdade, uma resposta de Moscou a “um longo
processo de cerco e tentativa de balcanização” do território da Rússia. Também
defende que “o Ocidente colocou a Rússia contra a parede” e que, agora, o país
está travando “uma luta pela sua própria sobrevivência”. Alinhando a doutrina
de Dugin com as narrativas falsas do interesse do Kremlin, a NR ainda sustenta
que “uma vitória russa [na guerra com a Ucrânia] acelerará o colapso da unipolaridade para o benefício de todos
os povos oprimidos do mundo, incluindo o brasileiro”.
A conta da NR no X integra
uma rede de treze perfis que usam a plataforma para impulsionar discursos
pró-Putin. Juntos, esses perfis têm nas diversas redes sociais nada menos do
que 1 milhão de seguidores. Entre eles, o paulista Rafael Lusvarghi,
descendente de uma família húngaro-brasileira, que ficou conhecido por ter
liderado uma unidade de combate russa em 2014, quando Moscou invadiu e tomou a
região de Donbass da Ucrânia. Hoje com 39 anos, Lusvarghi fez curso técnico de
agronomia, estudou comércio internacional e entrou para a Polícia Militar,
trabalhando em São Paulo e no Pará. Em 2010 migrou para a Rússia, cursou
medicina na Universidade de Kursk e adotou o nome Riurik Variag Volkovitch. Em
janeiro de 2017, depois de lutar ao lado dos russos em favor do separatismo da
região da Crimeia, Lusvarghi foi condenado a treze anos de prisão na Ucrânia
por terrorismo. Ele aparece em documentos do Departamento de Estado
americano como membro da Nova Resistência.
Como se vê, quem pensa que
as posições de Putin e Dugin não encontram eco no Brasil está enganado. Uma
análise das conexões entre a desinformação russa e as correntes políticas
ativas no país mostra inclusive que a visão dominante no Kremlin encontra campo
fértil por aqui, tanto à direita quanto à esquerda.
A extrema direita e parte da
direita não deixam de ver com bons olhos a mão dura usada por Moscou para punir
criminosos e os cidadãos “pouco patriotas”. Também se alinham com facilidade ao
conservadorismo moral e ao discurso anti-LGBTQIA+ de Putin. Parte da esquerda
brasileira, por sua vez, historicamente avessa ao que chama de “imperialismo
americano”, não costuma estranhar a proposta de multipolaridade mundial
defendida por Dugin nem deixa de admirar o nacionalismo propalado por Putin.
Enquanto isso, os críticos
do Kremlin vão caindo um a um. Em 16 de fevereiro, o advogado e ativista russo
Alexei Navalny, considerado um dos mais duros opositores de Putin, morreu numa
prisão no Ártico. No dia anterior, ele havia sido filmado em perfeito estado
físico e mental. Demorou dias até que o governo russo liberasse o corpo de
Navalny. Segundo a imprensa americana, sua mãe foi chantageada a fazer um
funeral privado.
Moscou negou seu
envolvimento na morte de Navalny, como negou sua participação no episódio da
aeronave IL-76 e dos supostos presos políticos ucranianos, encompridando dia
após dia sua série de vranyos trágicos.
Nathalia Watkins
É jornalista e mestre em políticas públicas
internacionais pela Universidade Johns Hopkins. Trabalhou na Veja e na BandNews TV. É
especialista em trust and safety e moderação de conteúdo, com foco em integridade da informação.
Trabalhou também no Twitter, no Tiktok e na Microsoft