domingo, 19 de abril de 2015
Féretros de
“soldados fantasmas” voltam a cemitérios russos
Os habitantes estão certos que o túmulo não identificado no cemitério público de Vybuty, região de Pskov, norte da Rússia, é de um paraquedista morto na Ucrânia. Os familiares têm medo de falar.
O capitão da 106º divisão aerotransportada viajou
900 milhas desde Rostov, na fronteira com a Ucrânia, para entregar o caixão de
zinco selado do paraquedista Sergei Andrianov, 20, numa remota aldeia na região
de Samara, entre o rio Volga e Cazaquistão.
A família havia ficado furiosa com o quartel da
divisão pela falta de notícias. No fim, um oficial exasperado ofereceu 100.000
rublos (1.850 dólares) para tranquilizá-la.
Contudo, Natasha, a mãe de Sergei, queria dados:
“Como é que ele morreu? Onde?”.
— “Meu filho morreu e ninguém pode explicar o que
aconteceu”, disse ela em lágrimas à VICE News.
Ela exibe os documentos que recebeu junto com o
corpo. Explicações imprecisas, nenhuma referência ao local. Um oficial
confidenciou que Sergei estava em “missão especial” num local de “transferência
temporária”, onde aconteceu uma explosão “incompatível com a sua vida”. Rostov
é mencionada em alguma parte.
“Eles
agem como se fosse um segredo de governo”, disse Natasha, “mas, honestamente,
eu quero dizer que isto é um crime do governo”.
Oficialmente, a Rússia não está em guerra, mas seus
soldados estão morrendo às dúzias — quiçá às centenas — na Ucrânia. Putin nega
uma e outra vez que haja tropas russas no país vizinho, mas os cadáveres como o
de Sergei voltam.
Jornalistas e ativistas dos direitos humanos
recolhem os históricos desses sacrifícios silenciados que já formam uma espécie
de “exército russo de fantasmas”.
Em evento internacional em Munique, o presidente ucraniano Petro Poroshenko exibe passaportes de soldados russos mortos ou capturados na Ucrânia.
Em agosto de 2014, o exército ucraniano progredia substancialmente e encaminhava-se para extinguir a rebelião pró-russa. Foi então que Moscou enviou suas tropas para evitar a derrota de seus protegidos.
Foi
uma invasão ao pé da letra. Calcula-se que 20.000 soldados violaram as
fronteiras. Muitos como Sergei só voltaram dentro de sacolas para cadáver.
O
caso dele bate com dezenas de outros relatórios recolhidos pelo Comitê de Mães
de Soldados, liderado por Valentina Melnikova.
Segundo
as denúncias que ela possui, pelo menos 500 membros das forças armadas russas
morreram na Ucrânia. O número concorda aproximadamente com os cálculos do
governo americano. Mas são difíceis de confirmar: a repressão espiona aqueles
que se interessam pelo assunto em demasia.
Para
Melnikova, nada disto é novo. Já aconteceu durante a invasão soviética do
Afeganistão ou na repressão da Chechênia, registra VICE News.
A
mídia estatal nada fala. A TV se refere ao governo de Kiev como “junta
fascista”. Os programas estão cheios de alusões a conspirações e a
“quintas-colunas” sabotando a Rússia.
O
clima de medo nas famílias impede que elas saiam a público. “Todo mundo cala.
Eles compreendem o que aconteceu e o que pode acontecer se você fala”, dizem os
parentes.
Natasha
percebeu isso não somente nos agentes do governo, mas também nos vizinhos da
aldeia.
Mas
o muro de silêncio começou a cair quando, em agosto (2014), chegaram os
primeiros corpos ao quartel de Pskov, perto da fronteira com a Estônia, a cinco
horas de carro de São Petersburgo, sede da 76º divisão aerotransportada.
Ainda
em agosto, oficiais ucranianos publicaram documentos de 60 dos pára-quedistas
de Pskov, cuja brigada foi quase extinta numa emboscada. A Rússia negou, e o
comandante da divisão declarou que todos seus soldados passavam bem.
Numa
segunda-feira, a igreja do pequeno cemitério da periferia de Pskov encheu-se de
gente, altos oficiais inclusive.
As cruzes não contêm nomes mas números num cemitério na região separatista pro-Rússia, perto de Donetsk
Mas
Irina Tumakova chegou muito mais cedo e pôde ver os soldados cobrindo com terra
os túmulos e o nome dos mortos: eram suboficiais da unidade mortos em agosto.
Um homem lhe ofereceu um copo de vodca dizendo: “Meu filho está ali”.
Irina
lhe perguntou se tinha morrido na Ucrânia.
—
“Onde, se não?” respondeu ele.
A
história correu pelas redes sociais russas. O quartel mandou silenciar, os
familiares se recusaram a receber os jornalistas, funcionários perseguiram a
jornalista russa que tentou se aproximar dos túmulos, recorrendo a ameaças e
agressões.
No
mesmo mês de agosto, a Ucrânia apresentou prisioneiros de guerra do 331º
regimento aerotransportado de Kostroma. O Kremlin teve que admitir, mas Putin
disse terem entrado na Ucrânia por “erro”.
Em
setembro, as emissoras estatais russas de TV reconheceram pela primeira vez que
um soldado russo fora morto na Ucrânia, mas alegarem tratar-se de um “patriota
voluntário”.
Um
outro “voluntário”, Nikolai Kozlov, foi apresentado pelas redes de TV
recuperando-se num hospital da perda de uma perna. “Ele foi porque recebeu
ordem”, contou seu tio.
O
povo russo continua sendo sistematicamente desinformado pela grande mídia,
quase toda ela nas mãos de camaradas de Putin.
Fonte: Flagelo russo