quarta-feira, 27 de março de 2024

DESINFORMAÇÃO RUSSA

 

questões geopolíticas

OS BRAÇOS BRASILEIROS DA DESINFORMAÇÃO RUSSA

Estudo de organização britânica identifica pessoas e entidades que têm promovido no país o programa político de Putin e seu guru, Aleksandr Dugin

Nathalia Watkins e Cristina Tardáguila 28 fev 2024_09h31

Océu sobre Yablonovo, cidadezinha russa situada a 20 km da fronteira com a Ucrânia, estava cinza na manhã do último dia 24 de janeiro quando um avião militar do tipo Iliyushin IL-76, herança da era soviética, surgiu no horizonte envolto numa estranha nuvem de fumaça, girou em torno de seu próprio eixo, embicou para baixo e, ao tocar o chão nevado, fez surgir uma bola de fogo que pintou o céu de laranja e preto.

“Leonid, na sua direção! Cacete!”, exclamou em russo uma das testemunhas do acidente, uma mulher que parecia falar ao telefone com alguém que estava prestes a ser atingido pelo avião. Naquela manhã, ela foi a única pessoa que conseguiu filmar o trajeto final da aeronave. Estava na esquina da rua central da pequena vila, um povoado fundado no início do século XVII que hoje tem cerca de 2 mil habitantes. A gravação que a mulher não identificada fez tem cerca de 30 segundos de duração e pouco revela sobre o que ocorreu. Só não é possível confirmar, a partir dela, se o IL-76 caiu por acidente ou foi derrubado.

“Muitos saíram às ruas [para ver o que tinha acontecido], mas ele [o avião] caiu muito longe, no meio da floresta”, disse uma moradora à agência de notícias estatal russa Ria Novosti. Na mesma reportagem, um homem foi mais preciso: “O avião caiu uns 3 km mata adentro.”

Embora houvesse muitas dúvidas sobre a queda, impossíveis de serem esclarecidas pelos relatos dos moradores de Yablonovo, Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, parecia não ter nenhuma. No fim daquela manhã, em uma coletiva de imprensa convocada às pressas no âmbito da ONU, ele afirmou sem pestanejar que a explosão do avião militar havia sido um “ataque terrorista” cometido pela Ucrânia que deixara 74 mortos. Entre as vítimas, enfatizou o chanceler, estariam três oficiais russos, seis membros da tripulação e nada menos do que 65 militares ucranianos.

Ainda de acordo com Lavrov, o grupo de ucranianos teria sido preso pelas Forças Armadas russas na guerra que se arrasta há dois anos e, naquela manhã, estaria a caminho de Kiev como parte de um acordo de troca de prisioneiros. “Mas, em vez dessa troca, o lado ucraniano lançou um míssil de defesa aérea a partir da região de Kharkov”, disse o diplomata, com os dedos cruzados e os cotovelos fincados na mesa na ONU. “Miravam o avião e acabaram provocando uma queda fatal.” Ajustando os óculos de aro fino, Lavrov emendou, dizendo que queria que o Conselho de Segurança da ONU realizasse um encontro urgente – às três da tarde (horário de Nova York) daquele mesmo dia – e alfinetou a França, país que presidia o órgão. “Espero que as autoridades agendem essa sessão.”

De maneira quase simultânea, na região de Belgorod, onde fica a minúscula Yablonovo, canais de Telegram, o aplicativo de mensagens mais popular da Rússia, foram inundados de mensagens, fotos, áudios e vídeos. Usuários davam notícias de que equipes trabalhavam no local do acidente, que pedaços do avião podiam ser vistos a 5 km do ponto da queda, que dezenas de janelas haviam sido estraçalhadas na cidade, e que, milagrosamente, a Igreja de Demétrio de Tessalônica, único ponto turístico dali, tinha ficado intacta. A fonte dessa última informação era o líder religioso da cidade, identificado como padre George Borovikov.

Viralizaram nesses canais de Telegram capturas de tela do site Ukrainska Pravda – que foi banido pela Rússia, mas é acessível via VPN (ferramenta que permite ao usuário de internet mascarar a localização de seu IP, de modo a acessar sites que não estão disponíveis ou são proibidos no país onde reside). Nessas imagens, lia-se que, segundo membros não identificados das Forças Armadas ucranianas, os militares da Ucrânia tinham, sim, derrubado o IL-76. O país teria obtido informações de que a aeronave russa estaria transportando mísseis antiaéreos do tipo S-300, razão pela qual a Ucrânia a teria abatido.

As capturas de tela eram verdadeiras. Entretanto, a informação sobre o suposto envolvimento de Kiev na explosão do IL-76 foi alterada pelo Ukrainska Pravda minutos depois de ser postada. Seguindo as melhores práticas do jornalismo, o site inseriu em seu texto uma nota de “correção” e explicou a mudança feita. Aparentemente, a fonte da reportagem voltara atrás e já não confirmava qualquer participação da Ucrânia no incidente com o avião militar russo.

Resultado: capturas de tela aterrissaram nos grupos de Telegram com o primeiro e o segundo textos do Ukrainska Pravda, jogando milhares de pessoas nos labirintos das teorias da conspiração. Em poucas horas, dezenas de postagens feitas no Telegram misturavam críticas ao jornalismo e teorias geopolíticas com pouco lastro na realidade.

Ao iniciar sua cobertura sobre a queda do avião militar, a agência de notícias russa Interfax publicou outro link que também se popularizou no Telegram. Nele, o militar da reserva Andrei Kartapolov, presidente do comitê de defesa da Duma (o Parlamento russo), dizia que o IL-76 havia sido abatido por “três mísseis Patriot ou Iris-T”. Segundo Kartapolov, os mísseis usados pela Ucrânia teriam vindo dos Estados Unidos e comprovariam o uso inadequado do apoio que o Ocidente tem dado à Ucrânia para que o país se defenda nessa guerra, batizada pelo presidente Vladimir Putin de “operação especial”.

Foi então que o governo de Volodymyr Zelensky partiu para o contra-ataque. Numa transmissão ao vivo feita pela internet na mesma noite de 24 de janeiro, o presidente ucraniano acusou Moscou de estar “jogando com a vida de prisioneiros ucranianos, com os sentimentos daqueles que os amam e com a emoção da sociedade ucraniana”.

“A Ucrânia está trabalhando para saber o que aconteceu com os prisioneiros de guerra, e o serviço de segurança ucraniano está investigando as circunstâncias [da queda do IL-76]”, enfatizou Zelensky, com o nariz a poucos centímetros da câmera. “Eu instruí nosso ministro de Relações Exteriores a dizer a nossos apoiadores [no exterior] que queremos uma data para a abertura de uma investigação internacional sobre esse caso.”

Também naquela noite, a inteligência ucraniana fez chegar à imprensa mundial duas informações que considerava vitais para sua defesa. Kiev confirmou que negociava uma troca de prisioneiros com Moscou (algo que acabou ocorrendo, sem qualquer incidente, em 31 de janeiro), mas enfatizou que, até o dia da queda do IL-76, não sabia quantos presos seriam trocados, que aviões poderiam ser usados no processo e que rotas eles tomariam.

Numa publicação feita no Telegram, a inteligência ucraniana negou ter recebido qualquer pedido da Rússia para garantir a segurança do espaço aéreo sobre Belgorod em 24 de janeiro e fez questão de destacar que esse tipo de informação, quando efetivamente passada, costuma ser cumprida à risca pelas partes. Até aquele dia, segundo Kiev, ao menos outros cinquenta episódios de troca de prisioneiros já haviam sido concluídos, sem maiores problemas, dentro do mesmo conflito com a Rússia. Não haveria, portanto, espaço para erro. Com isso, a Ucrânia dava a entender que, se a Rússia tinha realmente decidido devolver prisioneiros naquela manhã fria de quarta-feira, não havia combinado absolutamente nada com ela. Tratava-se de uma ação unilateral.

Uma semana passou, e o empurra-empurra sobre a culpa pela queda do IL-76 persistiu. Em 1º de fevereiro, os ucranianos colocaram um porta-voz da inteligência na tevê para cutucar os russos com vara curta.

Andriy Yusov, um político ativista de 41 anos que lembra o ex-ministro da Justiça Anderson Torres e desde 2022 ocupa o cargo de porta-voz do Ministério da Defesa da Ucrânia, reivindicou, em cadeia nacional, que os restos mortais dos prisioneiros supostamente mortos no avião fossem devolvidos a seu país. Se eram realmente 65 pessoas, alguns corpos com certeza teriam sido recuperados. Precisariam, então, ser identificados e entregues a seus familiares.

No dia seguinte, o Kremlin deu o troco. Mandou seu porta-voz, Dmitry Peskov, dizer à agência de notícias RIA Novosti que Moscou estranhava muito aquela cobrança pública, já que jamais havia recebido de Kiev qualquer pedido referente à repatriação dos restos mortais dos prisioneiros mortos em 24 de janeiro. Peskov não disse à RIA Novosti se atenderia ou não a solicitação de Yusov. Encerrou a entrevista sem se comprometer com nada.

Até a primeira semana de fevereiro, havia dúvidas consideráveis sobre o nome dos 65 prisioneiros de guerra supostamente mortos na queda do IL-76 – e uma poderosa personalidade da mídia russa estava associada a tais incertezas. Margarita Simonyan, uma jornalista de 43 anos, olhos tristonhos e sobrancelhas bem demarcadas, havia divulgado, no próprio dia 24 de janeiro, uma lista com os nomes dos possíveis mortos no IL-76. Ela é a editora-chefe dos veículos estatais russos Russia Today Rossiya Segodnia/Sputnik, ambos muito próximos ao Kremlin, mas publicou a lista em seu próprio canal de Telegram. Contumaz propagadora de informações falsas ou distorcidas, Simonyan é tratada pela mídia ocidental como “propagandista”, e seu nome aparece em praticamente todas as listas de sanções aplicadas a cidadãos russos. Daí o mundo ter duvidado de sua lista de mortos, e diversas equipes de jornalistas terem sido deslocadas para tentar confirmar – em vão – as informações divulgadas por ela.

O projeto independente Schemes, da Rádio Free Europe, chancelou a lista de oficiais russos mortos na queda, entrevistando familiares e rastreando postagens de luto em redes sociais. Não obteve, no entanto, quaisquer dados sobre os supostos prisioneiros ucranianos. O site de fact-checking Suspilne, baseado na Ucrânia, conseguiu confirmar que os ucranianos listados por Simonyan realmente eram prisioneiros de guerra, mas não foi capaz de atestar suas mortes.

Diretor de projetos especiais do Centro para Resiliência da Informação (CIR, na sigla em inglês), o britânico Tom Southern é um homem calvo, de olhos claros, que carrega no currículo uma graduação em direito pela Universidade de Surrey e uma pós-graduação na mesma área pela Universidade de Londres. Há dez anos ele estuda as falsidades impulsionadas pela Rússia, e seus olhos brilham quando lhe perguntam sobre isso.

Em um encontro que uniu especialistas em desinformação, em meados de janeiro, Southern resumiu os objetivos da Rússia ao lançar mão da desinformação como estratégia geopolítica:

A Rússia busca dividir as pessoas, as nações, as ideias. Opõe o universo doméstico ao estrangeiro. Vende a ideia de que o que há na Rússia é melhor do que em qualquer outro lugar. Insiste que o resto do mundo está errando em tudo o que faz. Classifica como inimigo, traidor, louco ou idiota quem pensa diferente. E faz tudo isso de forma simultânea nos campos político, diplomático, militar, social, midiático e até mesmo religioso. Não é fácil acompanhar.

Depois de dez anos dedicados ao estudo da desinformação russa, Southern certificou-se de que ela está por todos os lados. Ele disse à Piauí que “a Rússia investiu massivamente em redes humanas e digitais que funcionam em português”. Também alertou para o fato de que “essas redes passaram despercebidas durante décadas, inclusive no Brasil”.

Southern conta que a base teórica para a manipulação da realidade como política de Estado na Rússia moderna antecede Putin e é obra do político e empresário de mídia Vladislav Surkov, hoje com 59 anos. Ele começou sua vida profissional no meio das artes e foi um dos primeiros oligarcas a colocar um grupo de comunicação inteiro a serviço do Kremlin. Entre 2011 e 2013, foi vice-primeiro-ministro da Rússia. Nos sete anos seguintes, serviu de conselheiro e assistente de Putin.

Possivelmente um dos mentirosos mais renomados da Rússia pós-soviética, Surkov se destacou na política por sua habilidade para usar a manipulação psicológica que aprendeu em um curso de direção teatral (que não chegou a terminar). “A ideia de Surkov era não apenas manipular pessoas, e sim ir mais a fundo. Era mexer com a percepção delas sobre a realidade de modo que nunca tenham total certeza do que realmente está acontecendo. E isso é algo difícil de conter, porque é simplesmente bem difícil de definir”, disse Southern.

No Brasil, as ideias de Surkov reverberaram menos que as do doutrinador político de extrema direita Aleksandr Dugin, considerado o guru de Putin e do expansionismo russo. Em 2002, ele fundou o partido Eurásia, nome que alude à sua crença de que a Rússia tem um destino tão imenso que não poderia ser enquadrada geopoliticamente nem na Europa nem na Ásia. Na formulação de sua Quarta Teoria Política, é a Rússia que ele destaca como melhor posicionada para exercer um papel de liderança no mundo atual, multipolarizado e regido por uma nova ordem que substituiria as três ideologias dominantes do século XX – liberalismo, fascismo e comunismo.

É baseado nesse enredo que Dugin justifica a invasão da Ucrânia. O conflito seria, na verdade, o resultado dos esforços de Moscou para evitar que prevaleça a dominância do Ocidente (leia-se, dos Estados Unidos) no mundo multipolarizado. Para ele, a invasão da Ucrânia é como uma missão divina ou sobrenatural, o “início da luta contra Satã”, como disse à revista britânica The Spectator, em janeiro passado. A mesma lógica valeria para eventuais conflitos entre China e Taiwan, entre as Coreias ou mesmo para a guerra entre Israel e o Hamas, pressupondo que por trás de um dos polos dessas disputas estão os Estados Unidos, buscando impedir a multiplicação das lideranças no mundo. No caso específico de Israel, Dugin enxerga o atual conflito com o Hamas como um caminho para que o país deixe de ser um fantoche dos Estados Unidos, dando também espaço ao mundo multipolar.

Dugin começou a investir no Brasil a partir de um debate online (que virou livro) com o astrólogo e polemista Olavo de Carvalho. O guru de Putin esteve por duas vezes no país, onde participou de diversos eventos acadêmicos. Estudo feito por pesquisadores do CIR identificou dezenove pesquisadores, acadêmicos e professores em ao menos seis universidades e escolas militares brasileiras que têm promovido as ideias de Dugin. São pessoas ligadas à USP, à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e à Escola Superior de Guerra (ESG).

Em 2014, com o apoio de duas pessoas ligadas à USP – um professor e uma pesquisadora afiliada – , Dugin inaugurou em São Paulo o Centro de Estudos da Multipolaridade (CEM, hoje desativado), que chegou a reunir 2 mil pessoas, entre elas, a filha do músico Djavan.

Em abril de 2022, já durante a guerra na Ucrânia, professores da Uerj e pesquisadores afiliados à universidade anunciaram que Dugin participaria – pela quarta vez – de um evento, que acabou cancelado, devido a críticas e protestos. Segundo os pesquisadores do CIR, há uma estreita ligação entre o Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública, da Uerj, e o Laboratório de Segurança Internacional e Defesa Nacional (Labsden), da ESG. Frequentemente, eventos de uma das instituições são promovidos e prestigiados por pesquisadores da outra.

Em abril de 2023, por exemplo, quando o jornal da ESG, que é administrada pelo Ministério da Defesa, fez uma edição sobre a guerra na Ucrânia, deu espaço para um artigo de Dugin de quinze páginas, que reverberou no Laboratório de Estudos de Defesa e Segurança Pública. O texto, intitulado O Segundo Mundo, a semiperiferia e o estado-civilização na teoria do mundo multipolar, é uma tentativa de convencer o Brasil a apoiar a nova ordem mundial postulada pelo guru de Putin.

Fora do eixo Rio-São Paulo foram localizadas ainda outras duas conexões de Dugin com universitários brasileiros. Membros da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizaram ao menos dois eventos com ele, ambos financiados pelo Alexander Gorchakov Public Diplomacy Fund. Todas as traduções de Dugin no Brasil são feitas por Uriel Irigaray Araújo, doutorando em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB), que ganhou popularidade entre os seguidores do guru ao entrevistá-lo em 2020.

No mundo virtual, Dugin e toda desinformação russa também chegam aos brasileiros por meio das redes sociais. Entre novembro e dezembro de 2023, pesquisadores do CIR coletaram dados públicos sobre as conversas travadas em português em 31 canais do Telegram e identificaram que narrativas falsas disseminadas pelo guru e pelo Kremlin não encontram ali qualquer barreira. Justificativas estapafúrdias para a guerra na Ucrânia e insinuações de que Kiev leva a cabo um genocídio se misturam com postagens homofóbicas alinhadas com a política de Putin.

Quando o mundo assistiu ao massacre de civis em Bucha, cidade a noroeste de Kiev, os canais de Telegram em português não só aderiram ao discurso de Moscou negando qualquer responsabilidade pelo ocorrido como o difundiram. No Telegram, a Sputnik Brasil postou que as acusações que atribuíam à Rússia as dezenas de corpos filmadas e fotografadas no local eram “completamente infundadas”, uma espécie de “conto da carochinha”. Num canal de Telegram com 37,6 mil inscritos, usuários concordavam que o “suposto massacre de Bucha é uma fake News das televisões ocidentais”. E comemoravam que a Embaixada da Rússia no Brasil havia se somado à conversa, negando que tivesse ocorrido um massacre na cidade ucraniana. Em dezembro de 2022, usando imagens de câmeras de segurança e registros de fontes governamentais, o New York Times mostrou que o massacre em Bucha foi cometido, sim, por tropas russas. Soldados de Putin foram flagrados interrogando e executando homens desarmados e crianças.

Aletã Nika Aleksejeva e o ucraniano Roman Osadchuk são bolsistas do think tank americano Atlantic Council e estudam como a Rússia tem usado a desinformação para influenciar no entendimento global sobre a guerra com a Ucrânia. Em fevereiro de 2023, quando o conflito entre os dois países fez um ano, Aleksejeva e Osadchuk se uniram numa transmissão ao vivo e compartilharam algumas de suas conclusões.

Aleksejeva analisou mais de 10 mil publicações feitas por catorze meios de comunicação pró-Kremlin nos setenta dias que antecederam a invasão do território ucraniano. No texto intitulado Narrative Warfare, ela afirma que a mídia pró-Putin não só impulsionou flagrantes falsidades alinhadas com os interesses do presidente como também pavimentou o apoio popular ao Kremlin na região. Para fazê-lo, a imprensa pró-Kremlin martelou cinco narrativas absolutamente falsas. Publicou textos dizendo que “a Rússia só queria paz para a região”, que “tem a obrigação moral de proteger a segurança” daquela parte do mundo, que “a Ucrânia é um país agressivo” e “o Ocidente estaria criando tensões na região” de própósito. Alekseveja também achou centenas de publicações acusando a Ucrânia de ser “uma marionete do Ocidente”, que Kiev teria armas de destruição em massa e o governo do judeu Zelensky seria, na verdade, uma junta nazista.

No evento do Atlantic Council, Osadchuk, por sua vez, demonstrou que o Kremlin distribuiu desinformação sob medida depois da invasão da Ucrânia. Para ganhar adeptos na Polônia, por exemplo, a Rússia impulsionou postagens que promoviam um possível atrito entre poloneses e refugiados ucranianos. Na França, espalhou rumores de que as armas dadas por Paris a Kiev estariam sendo revendidas no mercado negro pelos ucranianos, o que faria deles parceiros pouco confiáveis. Na Geórgia, país que tentava entrar na União Europeia, os russos disseminaram a ideia de que, se o país apoiasse a Ucrânia, não teria paz e, em consequência, não seria aceito no bloco europeu. Era melhor que a Geórgia ficasse afastada do conflito.

Em Undermining Ukraine Minando a Ucrânia), Osadchuk mostra que Moscou também não se esqueceu do Sul global. Na África do Sul, diplomatas russos fizeram tuítes acusando a embaixada ucraniana de recrutar mercenários na região (o que era falso). Contas russas também impulsionaram, em 4 de março de 2022, a hashtag #IStandWithPutin (Eu estou com Putin), espalhando a ideia de que os ucranianos são racistas. Na imprensa dos países latino-americanos de língua espanhola, Osadchuk observou que diplomatas russos difundiam desinformação. Fizeram pedidos diretos de desmilitarização e de “desnazificação” da Ucrânia, em “reportagens” da Russia Today e do Sputnik News, em espanhol, que viralizaram entre os latino-americanos.

Até a publicação deste texto, nenhuma autoridade independente havia sido capaz de ir a Yablonovo investigar a queda do avião, validar a lista final de mortos e determinar de quem foi a culpa pelo incidente. Não havia confirmação sequer da presença de ucranianos no voo. Com isso, uma velha expressão voltou a circular nas conversas entre civis russos e ucranianos: o episódio envolvendo aquele IL-76 com certeza era o mais novo caso de vranyo.

Quem fala ou estuda a língua russa sabe que há dois verbos com o significado de “mentir”: lgat e vrat. O primeiro significa mentir de fato. O segundo tem uma carga pejorativa e de deboche, e significa mentir sobre algo que o interlocutor não levará a sério (nem como mentira).

Vranyo é um substantivo derivado do verbo vrat. Numa adaptação moderna, é uma versão russa para a fake News ocidental, mas anabolizada e institucionalizada. É uma mentira descarada, dita sem nenhuma pretensão de que alguém acredite nela: você sabe que eu estou mentindo, e eu sei que você sabe que eu estou mentindo. Você sabe que eu sei que você sabe que eu estou mentindo, mas continua mentindo mesmo assim. Então você continua me ouvindo atentamente e, ainda por cima, toma notas do que eu estou dizendo, como se fosse coisa séria.

Em dezembro de 2011, por exemplo, o canal de televisão russo Rossiya 24 transmitiu ao vivo os resultados da última pesquisa de intenção de voto para as eleições parlamentares de Rostov-on-Don, no Sul da Rússia. Atrás da apresentadora, uma jovem de perfil delgado e cabelos loiros, havia um telão que mostrava os nomes dos vários partidos em disputa e as respectivas pontuações percentuais obtidas na pesquisa. Tudo estaria correto na cena não fosse o fato de que, somados, os números supostamente obtidos pela coligação pró-Kremlin chegavam à inimaginável marca de 146% das intenções de voto. Erro do infografista? De forma alguma. A mesma cena – um caso clássico do vranyo – tem se repetido sistematicamente na tevê russa desde então. Alguns russos estão tão habituados a isso que chegam a pensar que se trata de uma piada ou ironia dos jornalistas de plantão, não uma tática desinformativa.

Como em outras partes do mundo, na Rússia a desinformação também é prática antiga e recurso usado nos mais diversos cenários. No século XVIII, por exemplo, Grigory Potemkin criou vilas de fachada para que sua amada, a imperatriz Catarina, a Grande, acreditasse que a conquista da Crimeia havia sido bem-sucedida. Por trás das fachadas, não havia nada. Quando entrevistamos russos e estudiosos da Rússia sobre esse assunto, encontramos um ponto de interrogação. Enquanto uns garantem que a aldeia de Potemkin existiu, outros dizem que elas eram lorotas – um vranyo de primeira. Fato é que a expressão “vilas de Potemkin” aparece em alguns idiomas (inclusive o português) para designar obras de fachada. Os Estados Unidos já fizeram uso dela para se referir a feitos da China, da Coreia do Norte ou do Irã.

No século XIX, a arte de desinformar já estava tão enraizada entre os russos que Dostoiévski resolveu debater o assunto em uma de suas obras-primas. Em O Idiota, o Príncipe Míchkin, um epilético que retorna à Rússia depois de ter passado anos vivendo num sanatório suíço, divaga sobre como a vida pode ser muito melhor quando substituímos as verdades miseráveis do nosso dia a dia por fatos fantásticos. Para o personagem, imaginar uma realidade alternativa, difundi-la a torto e a direito e conseguir que todos acreditem nela é bem mais divertido e belo do que viver os dias cinzentos do nosso cotidiano. Quem diria o contrário?

É fácil ver como o sofisma de Míchkin se encaixa em episódios bem mais mundanos vindos da Rússia. No dia 7 de fevereiro de 2014, quando um dos aros olímpicos iluminados não se abriu para formar na tela da tevê russa o símbolo dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, realizados na cidade de Sochi, o produtor do evento nem piscou. Substituiu a cena falha por outra que havia sido gravada no ensaio. Com essa mentirinha tele-esportiva, em vez de entrar para a história como um desastre miserável, a festa olímpica de Sochi virou uma fantástica memória (pelo menos para os cidadãos russos).

Na política externa, a negação russa dos fatos foi levada ao extremo pelas mãos do diplomata Andrey Gromyko, um dos idealizadores da ONU. Conhecido como “Mr. Nyet (Senhor não)” por ter exercido mais de 25 direitos a veto como representante da União Soviética na organização, Gromyko também tentou engabelar John Kennedy durante a crise dos mísseis cubanos. Numa reunião realizada com o presidente americano pouco depois de serem obtidas evidências fotográficas de que os soviéticos realmente haviam deposto mísseis nucleares em bases militares de Cuba, Gromyko disse que seu país jamais seria uma ameaça aos Estados Unidos e que não havia motivos para se preocupar com seu país. Em suas memórias, Gromyko completa que em nenhum momento durante aquela conversa Kennedy perguntou sobre a existência de mísseis soviéticos em Cuba. “Consequentemente não havia nenhuma necessidade de eu dizer se eles estavam ou não estavam lá”, acrescenta o diplomata, que depois foi presidente da URSS (entre 1985 e 1988).

Identificar a desinformação russa no Telegram vai além da análise da narrativa. Passa também pelo estilo da escrita comumente usada pelos teóricos da conspiração. Os desinformadores que atuam a favor do Kremlin em português costumam abusar, por exemplo, das chamadas estratégias de revelação. Usam, com excessiva frequência, frases como “conheça a verdadeira história”. Outra maneira de identificar as campanhas de influência russa são erros gramaticais, escolha de palavras pouco comuns na língua portuguesa, uso de termos mal traduzidos e formalidades inadequadas, que indicam uso de tradução automatizada, típico recurso de quem quer inundar as redes o mais rápido possível, replicando conteúdos de outros idiomas.

Em 30 de novembro de 2023, uma postagem feita por um administrador de canal dizia o seguinte: “A julgar pela fotografia de Tinkov, a descrição que ele deu ao presidente russo lhe convém melhor.” A frase, possivelmente traduzida automaticamente, soa estranha para o estilo coloquial das redes sociais. Em outra, o administrador afirmou que “imagens SAR de satélite, ou imagens de radar, mostram claramente como as Forças Armadas Russas concentraram sistemas de guerra electrónica tão poderosos nas baías de Sebastopol que criam iluminação nos sensores dos satélites.” O termo “eletrônica” foi grafado em espanhol.

No X (antigo Twitter), o grupo pró-Kremlin que faz mais barulho em língua portuguesa é a Nova Resistência (NR), tachado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos como uma organização neofascista. Criada no Rio de Janeiro em 2015, a NR diz contar com 250 militantes e estar presente em vinte estados brasileiros. Seu logo mostra uma estrela verde com a sigla do movimento escrita em preto.

A NR publica no X com frequência. Em seus posts sobre a guerra na Ucrânia, repete que “a mídia internacional retrata a operação especial russa como uma ‘agressão injustificada’”, mas que ela é, na verdade, uma resposta de Moscou a “um longo processo de cerco e tentativa de balcanização” do território da Rússia. Também defende que “o Ocidente colocou a Rússia contra a parede” e que, agora, o país está travando “uma luta pela sua própria sobrevivência”. Alinhando a doutrina de Dugin com as narrativas falsas do interesse do Kremlin, a NR ainda sustenta que “uma vitória russa [na guerra com a Ucrânia] acelerará o colapso da unipolaridade para o benefício de todos os povos oprimidos do mundo, incluindo o brasileiro”.

A conta da NR no X integra uma rede de treze perfis que usam a plataforma para impulsionar discursos pró-Putin. Juntos, esses perfis têm nas diversas redes sociais nada menos do que 1 milhão de seguidores. Entre eles, o paulista Rafael Lusvarghi, descendente de uma família húngaro-brasileira, que ficou conhecido por ter liderado uma unidade de combate russa em 2014, quando Moscou invadiu e tomou a região de Donbass da Ucrânia. Hoje com 39 anos, Lusvarghi fez curso técnico de agronomia, estudou comércio internacional e entrou para a Polícia Militar, trabalhando em São Paulo e no Pará. Em 2010 migrou para a Rússia, cursou medicina na Universidade de Kursk e adotou o nome Riurik Variag Volkovitch. Em janeiro de 2017, depois de lutar ao lado dos russos em favor do separatismo da região da Crimeia, Lusvarghi foi condenado a treze anos de prisão na Ucrânia por terrorismo. Ele aparece em documentos do Departamento de Estado americano como membro da Nova Resistência.

Como se vê, quem pensa que as posições de Putin e Dugin não encontram eco no Brasil está enganado. Uma análise das conexões entre a desinformação russa e as correntes políticas ativas no país mostra inclusive que a visão dominante no Kremlin encontra campo fértil por aqui, tanto à direita quanto à esquerda.

A extrema direita e parte da direita não deixam de ver com bons olhos a mão dura usada por Moscou para punir criminosos e os cidadãos “pouco patriotas”. Também se alinham com facilidade ao conservadorismo moral e ao discurso anti-LGBTQIA+ de Putin. Parte da esquerda brasileira, por sua vez, historicamente avessa ao que chama de “imperialismo americano”, não costuma estranhar a proposta de multipolaridade mundial defendida por Dugin nem deixa de admirar o nacionalismo propalado por Putin.

Enquanto isso, os críticos do Kremlin vão caindo um a um. Em 16 de fevereiro, o advogado e ativista russo Alexei Navalny, considerado um dos mais duros opositores de Putin, morreu numa prisão no Ártico. No dia anterior, ele havia sido filmado em perfeito estado físico e mental. Demorou dias até que o governo russo liberasse o corpo de Navalny. Segundo a imprensa americana, sua mãe foi chantageada a fazer um funeral privado.

Moscou negou seu envolvimento na morte de Navalny, como negou sua participação no episódio da aeronave IL-76 e dos supostos presos políticos ucranianos, encompridando dia após dia sua série de vranyos trágicos.

Nathalia Watkins

É jornalista e mestre em políticas públicas internacionais pela Universidade Johns Hopkins. Trabalhou na Veja e na BandNews TV. É especialista em trust and safety e moderação de conteúdo, com foco em integridade da informação. Trabalhou também no Twitter, no Tiktok e na Microsoft