O Governo português escolheu o seu comissário a pensar no seu interesse interno.
1. Entre a série de episódios para a escolha
do próximo comissário português (Carlos Moedas irá para Bruxelas), e a crise da
Ucrânia, que a Europa não viu chegar, a escolha pareceu-me inicialmente muito
difícil. Depois, percebi que não era preciso escolher. São as várias dimensões
em que hoje se reflete o destino da União Europeia, que é também o nosso
destino.
Comecemos pela
Ucrânia. O que está em jogo começa a pôr em causa a segurança europeia. Depende
de uma questão fulcral: como
lidar com Vladimir Putin, uma pergunta a que a Europa teve sempre
dificuldade em responder. Compreende-se. Nunca conseguiu construir uma política
comum para o relacionamento com a Rússia. Cada um olhava para Moscou na
perspectiva do seu interesse próprio. As coisas mudaram radicalmente na última
semana. E puderam mudar, graças a uma mudança fundamental que ocorreu em
Berlim. Não vale a pena repetir até que ponto a Alemanha tem interesses
econômicos com a Rússia, representando mais de um terço das trocas comerciais
entre a União e o seu grande vizinho de Leste. Continua às voltas com o seu
papel de liderança europeia – os analistas chamam-lhe “potência hegemônica
relutante”. A chanceler levou tempo a perceber, mas acabou por chegar lá. Como
disse o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, “é a segurança europeia que
está em causa”. E isso pode valer bastante mais do que a economia. Merkel já avisou os alemães que
haverá um preço a pagar. Em muito pouco tempo, Berlim passou a defender
sanções que se dirigem aos principais setores da economia e que terão um
impacto profundo. A gota que fez transbordar o copo foi a tragédia do avião da
Malásia. Berlim ainda ficou à espera da resposta de Putin, que se fez tardar,
alimentando a esperança de alguma abertura. Não foi assim. Putin decidiu-se por uma
fuga para a frente. Fornece
material cada vez mais pesado aos combatentes pró-russos (e provavelmente
soldados), quer impedir o acesso aos destroços do avião. Merkel, que
mantém uma linha de comunicação com o Kremlin, entendeu que os dois falavam
linguagens absolutamente diferentes. “Ele
não vive no nosso mundo” foi uma das primeiras coisas que disse a Obama
quando o conflito rebentou. Hoje percebe-se que é um conflito em moldes que a
Europa já se tinha esquecido de que podiam vir alguma vez a acontecer. Putin pode facilmente manter uma
guerra intermitente na Ucrânia, desestabilizando toda a região e desafiando
diretamente os Estados Unidos e a Europa. Pode encontrar (inventar é
mais o seu gênero) um pretexto para desestabilizar países como os bálticos. As
sanções podem ajudar alguma coisa? Os russos, ao contrário dos europeus,
conseguem suportar grandes sacrifícios, mas não todos os sacrifícios. Os amigos
oligarcas de Putin querem continuar a ser oligarcas. A ameaça energética pode
resultar aqui e ali, mas tem um efeito de boomerang.
A Europa é o maior cliente da energia russa e aquele que paga mais caro e a
horas. A proibição de venda de tecnologia de ponta para o setor energético e
para a defesa fará estragos. A proibição dos bancos russos estatais de acesso
aos mercados financeiros europeus não é fácil de resolver. O risco, como diz a
chanceler, é Putin não
viver no nosso mundo. E o risco ainda maior é a Europa não perceber que
esse mundo em que ele vive pode ser o mundo de amanhã. A imprensa britânica
noticiou que a chanceler estava a negociar secretamente com Putin para chegar a
um acordo que lhe salvasse a face. A de Putin, naturalmente. São boas notícias,
porque agora o fará numa posição muito mais forte.
2. Recuemos agora
para a boa e velha Europa, que também mudou muito nos últimos tempos. A escolha
da nova Comissão está a sofrer as consequências dessa mudança. Primeiro, os
Governos perderam o controle da escolha do sucessor de Barroso quase sem se
darem por isso. O Parlamento Europeu, que está fascinado com o novo poder que o
Tratado de Lisboa lhe dá, quer manter um controlo apertado sobre a composição
da Comissão. Juncker sabe disso e está desesperado com a desatenção dos
Governos. Precisa de uma Comissão que ajude a restituir-lhe a força que foi
perdendo. Os nomes que tem na mesa não chegam para cumprir um dos critérios do
PE: o equilíbrio entre homens e mulheres. Provavelmente, vai ter de pedir a
alguns Governos que lhe mandem outra pessoa. O problema é que, como sabemos
pela nossa própria experiência, esta escolha obedece mais a critérios políticos
internos do que europeus, complicando cada vez mais a tarefa. O Tratado de
Lisboa diz que os Governos “dão sugestões de nomes”, mas a “seleção” cabe ao
presidente. Juncker pode ter aqui alguma margem de manobra junto dos Governos.
A questão mais lamentável é que, nesta habitual mercearia, ninguém se lembra de
olhar lá para fora, para a Ucrânia ou para o Médio Oriente, limitando-se a
discutir se o novo chefe da diplomacia europeia é mulher ou homem, socialista
ou conservador, mas nunca a sua capacidade de transformar este cargo numa coisa
a sério.
Nenhum comentário:
Postar um comentário