sábado, 2 de agosto de 2014

OPINIÃO

O Governo português escolheu o seu comissário a pensar no seu interesse interno.
1. Entre a série de episódios para a escolha do próximo comissário português (Carlos Moedas irá para Bruxelas), e a crise da Ucrânia, que a Europa não viu chegar, a escolha pareceu-me inicialmente muito difícil. Depois, percebi que não era preciso escolher. São as várias dimensões em que hoje se reflete o destino da União Europeia, que é também o nosso destino.
Comecemos pela Ucrânia. O que está em jogo começa a pôr em causa a segurança europeia. Depende de uma questão fulcral: como lidar com Vladimir Putin, uma pergunta a que a Europa teve sempre dificuldade em responder. Compreende-se. Nunca conseguiu construir uma política comum para o relacionamento com a Rússia. Cada um olhava para Moscou na perspectiva do seu interesse próprio. As coisas mudaram radicalmente na última semana. E puderam mudar, graças a uma mudança fundamental que ocorreu em Berlim. Não vale a pena repetir até que ponto a Alemanha tem interesses econômicos com a Rússia, representando mais de um terço das trocas comerciais entre a União e o seu grande vizinho de Leste. Continua às voltas com o seu papel de liderança europeia – os analistas chamam-lhe “potência hegemônica relutante”. A chanceler levou tempo a perceber, mas acabou por chegar lá. Como disse o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, “é a segurança europeia que está em causa”. E isso pode valer bastante mais do que a economia. Merkel já avisou os alemães que haverá um preço a pagar. Em muito pouco tempo, Berlim passou a defender sanções que se dirigem aos principais setores da economia e que terão um impacto profundo. A gota que fez transbordar o copo foi a tragédia do avião da Malásia. Berlim ainda ficou à espera da resposta de Putin, que se fez tardar, alimentando a esperança de alguma abertura. Não foi assim. Putin decidiu-se por uma fuga para a frente. Fornece material cada vez mais pesado aos combatentes pró-russos (e provavelmente soldados), quer impedir o acesso aos destroços do avião. Merkel, que mantém uma linha de comunicação com o Kremlin, entendeu que os dois falavam linguagens absolutamente diferentes. “Ele não vive no nosso mundo” foi uma das primeiras coisas que disse a Obama quando o conflito rebentou. Hoje percebe-se que é um conflito em moldes que a Europa já se tinha esquecido de que podiam vir alguma vez a acontecer. Putin pode facilmente manter uma guerra intermitente na Ucrânia, desestabilizando toda a região e desafiando diretamente os Estados Unidos e a Europa. Pode encontrar (inventar é mais o seu gênero) um pretexto para desestabilizar países como os bálticos. As sanções podem ajudar alguma coisa? Os russos, ao contrário dos europeus, conseguem suportar grandes sacrifícios, mas não todos os sacrifícios. Os amigos oligarcas de Putin querem continuar a ser oligarcas. A ameaça energética pode resultar aqui e ali, mas tem um efeito de boomerang. A Europa é o maior cliente da energia russa e aquele que paga mais caro e a horas. A proibição de venda de tecnologia de ponta para o setor energético e para a defesa fará estragos. A proibição dos bancos russos estatais de acesso aos mercados financeiros europeus não é fácil de resolver. O risco, como diz a chanceler, é Putin não viver no nosso mundo. E o risco ainda maior é a Europa não perceber que esse mundo em que ele vive pode ser o mundo de amanhã. A imprensa britânica noticiou que a chanceler estava a negociar secretamente com Putin para chegar a um acordo que lhe salvasse a face. A de Putin, naturalmente. São boas notícias, porque agora o fará numa posição muito mais forte.
2. Recuemos agora para a boa e velha Europa, que também mudou muito nos últimos tempos. A escolha da nova Comissão está a sofrer as consequências dessa mudança. Primeiro, os Governos perderam o controle da escolha do sucessor de Barroso quase sem se darem por isso. O Parlamento Europeu, que está fascinado com o novo poder que o Tratado de Lisboa lhe dá, quer manter um controlo apertado sobre a composição da Comissão. Juncker sabe disso e está desesperado com a desatenção dos Governos. Precisa de uma Comissão que ajude a restituir-lhe a força que foi perdendo. Os nomes que tem na mesa não chegam para cumprir um dos critérios do PE: o equilíbrio entre homens e mulheres. Provavelmente, vai ter de pedir a alguns Governos que lhe mandem outra pessoa. O problema é que, como sabemos pela nossa própria experiência, esta escolha obedece mais a critérios políticos internos do que europeus, complicando cada vez mais a tarefa. O Tratado de Lisboa diz que os Governos “dão sugestões de nomes”, mas a “seleção” cabe ao presidente. Juncker pode ter aqui alguma margem de manobra junto dos Governos. A questão mais lamentável é que, nesta habitual mercearia, ninguém se lembra de olhar lá para fora, para a Ucrânia ou para o Médio Oriente, limitando-se a discutir se o novo chefe da diplomacia europeia é mulher ou homem, socialista ou conservador, mas nunca a sua capacidade de transformar este cargo numa coisa a sério.

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