Comentário
Depois de se apoderar da Crimeia, Moscou empurra a Ucrânia para o
caos. Não vai invadir nem anexar o Leste e Sul do país. A política
tradicional russa é manter uma Ucrânia fraca e, se necessário,
"ingovernável" de forma a assegurar a sua dependência. Neste momento, o
objetivo parece mais preciso: desorganizar e dividir a Ucrânia, de
forma a impedir as eleições de 25 de Maio que, calcula Vladimir Putin,
legitimariam um poder político hostil e pró-ocidental. Que acontecerá se
o Leste e o Sul boicotarem as eleições?
Moscou tem a sua alternativa: impor referendos
regionais que consagrariam um sistema federal e a autonomia das regiões,
inclusive em política externa, "balcanizando" a Ucrânia. Pretende
acentuar a polarização entre Leste e Oeste e convencer os ucranianos de
que o seu modelo federal será a solução mais realista e "pacífica".
Putin sabe que americanos e europeus têm escassos meios para anular a
ofensiva política russa.
O que aconteceu em Donestk, Kharkov ou
Lugansk não teve uma dimensão de massas. É um sinal. Seguir-se-ão meses
de crescente tensão. Os EUA e a UE acusam Moscou de desestabilizar a
Ucrânia e de orquestrar as manifestações pró-russas. Moscou intima Kiev
a não usar a força no Leste sob risco de desencadear uma "guerra
civil".
Putin tentará estrangular a economia ucraniana com a
subida do preço do gás (um aumento de 80%) enquanto os investidores
estrangeiros deixaram de ter vontade de correr para Kiev. O país está à
beira da bancarrota.
O nacionalismo ucraniano — e anti-russo —
afirmou-se nos últimos meses mas não em todo o país, que continua a ser
extraordinariamente frágil. Pareceu emergir uma nova elite social, mas
não teve ainda tradução política. A classe dirigente é a mesma de antes —
uma oligarquia corrupta — e as instituições não funcionam. Após a perda
da Crimeia, o governo teve de recorrer a oligarcas para controlar o
Leste do país. Hoje, é Rinat Akhmetov, o maior dos oligarcas, que está a
tentar "apagar o fogo" em Donetsk.
Em termos econômicos e
militares Moscou está em inferioridade perante Washington. Mas tem
tropas na fronteira, enquanto os americanos estão "longe" e os europeus
"desarmados". Kiev não tem a cobertura da NATO. A "vantagem" de Moscou é
ter muito a mais a perder na Ucrânia dos que os ocidentais, o que
incentiva Putin a correr riscos mesmo perante sanções pesadas — o que
está longe de ser garantido. A Ucrânia é vital para o seu grande
projeto estratégico — a construção da União Euro-Asiática. É, ainda, um
"estado-tampão" perante a NATO e a influência da UE.
Vários
analistas denunciam agora "a incultura política e a superficialidade da
moderna diplomacia ocidental" que não soube antecipar a reação russa e
festejou a destituição de Viktor Yanukovych no dia seguinte à assinatura
do compromisso de 21 de Fevereiro, subscrito por Yanukovych e pela
oposição e "testemunhado" pelos ministros do Negócios Estrangeiros da
França, Alemanha e Polônia e por um enviado de Moscou.
"Por que é
que América não compreende Putin?" — pergunta a historiadora e
ex-sovietóloga americana Angela Stent, outrora conselheira no
Departamento de Estado. Porque deixou de pensar a Rússia em termos
históricos e "os especialistas de democracia e economia" enviados para
Moscou nos anos 1990 pensavam em quadros estranhos à realidade russa.
Depois, os think tanks voltaram-se para China e para o mundo árabe. Por
isso, tal como Merkel, a América não percebe o mundo em que vive Putin.
Morrer por Kiev?
Ao incentivar a "mudança de regime" em Kiev, a UE assumiu a responsabilidade de ajudar a reconstruir a Ucrânia, política e economicamente. Cumprirá ou poderá cumprir? A Polônia e a Suécia lideram a política de intervenção e ajuda maciça. E a Alemanha ou a França?
Ao incentivar a "mudança de regime" em Kiev, a UE assumiu a responsabilidade de ajudar a reconstruir a Ucrânia, política e economicamente. Cumprirá ou poderá cumprir? A Polônia e a Suécia lideram a política de intervenção e ajuda maciça. E a Alemanha ou a França?
"A
chanceler Merkel tem de adotar uma atitude de firmeza e sem
ambiguidade perante a Rússia e isto significa pesadas sanções", escreve
Judy Dempsey, do think tank Carnegie Europe. "Não será tarefa fácil. Na
opinião pública alemã há um consenso de que a Ucrânia é difícil e talvez
não valha a pena defendê-la." Os países europeus não estão a agir em
conjunto "porque pensam que o esforço não vale a pena".
O
americano Walter Russell Mead convida Washington a optar entre "voltar
as costas" à Ucrânia, o que significará "um amargo fracasso ocidental"
ou lançar-se numa "dispendiosa, difícil e talvez condenada operação de
nation-building", que Putin tem meios para anular.
A prazo, a
política de "confronto estratégico" de Moscou perante o Ocidente vai
sair-lhe muito cara porque bloqueará a modernização da Rússia, observa o
analista russo Dmitri Trenin, que prevê um conflito por muitos anos.
Concorda Dempsey: "A Europa, e mais tarde a Rússia, vão pagar um alto preço."
Nenhum comentário:
Postar um comentário