Governo de “vontade popular” na Ucrânia tem tarefa monumental
Novo governo combina figuras próximas de Timochenko e líderes dos
protestos. Os próximos tempos irão dizer se a democracia da Maidan
funcionou.
Não deverá haver muitos governos na história da democracia cuja
aprovação esteja dependente dos apupos ou palmas de uma multidão. Mas
esse é pelo menos o método que os manifestantes da Praça da
Independência quiseram utilizar para a formação do seu executivo, que
terá tarefas gigantes pela frente. A primeira foi já nesta quarta-feira,
perante a Maidan.
Como sempre, foram muitos os nomes referidos, uns
mais plausíveis que outros, é certo. Em Kiev, o ambiente revolucionário
que animou a Praça da Independência nos últimos meses parece estar para
ficar. E mais: serão princípios revolucionários que vão guiar a agenda
política dos governantes, a começar pela própria origem do gabinete de
ministros.
A Praça Maidan preparava-se para uma longa jornada que
começou ao início da noite com o anúncio de que o líder da oposição
Arseni Yatseniuk (Partido Pátria) iria encabeçar o executivo. A partir daí, foram
anunciados vários nomes, alguns mais consensuais do que outros. Certas
nomeações foram vaiadas por grupos inteiros, como foi o caso do novo
ministro do Interior, Arsen Avakov. De uma forma geral, o novo governo
de unidade nacional combina várias personalidades próximas de Yulia
Tymoshenko e figuras que se notabilizaram durante a contestação.
Yatseniuk
tratava-se de uma escolha que muitos antecipavam, na medida em que alia
a experiência de passagens por governos anteriores com a legitimidade
de ter sido um dos rostos da contestação. Yatseniuk liderou o partido
Pátria durante a prisão de Yulia Tymoshenko e acompanhou de perto os
protestos dos últimos meses.
Poderá ser um bom sinal para os
próximos tempos, uma vez que muito do futuro da Ucrânia vai depender das
negociações internacionais para a obtenção de um resgate financeiro.
Para além de uma experiência como ministro da Economia, Yatseniuk era
visto como um dos líderes políticos da oposição mais fiáveis. Estando
agora fora da corrida à presidência, a nomeação de Yatseniuk pode abrir
caminho à possível candidatura de Tymoshenko.
Na Economia deverá
ficar um acadêmico, Pavlo Sheremeta, fundador e reitor da Faculdade de
Economia da Universidade Kiev Mohila. Uma das áreas mais sensíveis, as
Finanças, ficará a cargo de Oleksander Schlapak, que foi chefe de
gabinete do ex-Presidente Viktor Yushenko, que foi eleito na sequência
da Revolução Laranja. Schlapak tem pela frente a difícil situação
financeira da Ucrânia, cujas necessidades de financiamento para os
próximos dois anos ascendem a 25 mil milhões de euros e que convive com
uma desvalorização quase diária da moeda.
A escolha para os
Negócios Estrangeiros recaiu em Andri Deshchitsia, que foi embaixador na
Finlândia. A sua experiência diplomática no país nórdico poderá indicar
que a gestão nas relações exteriores de Kiev irá privilegiar a
integração europeia, sem contudo alienar totalmente Moscou, à
semelhança do que é feito pela Finlândia.
Durante a tarde, o
Conselho da Maidan – o órgão deliberativo informal formado durante os
protestos – esteve a escolher alguns nomes para outros cargos. Andrei
Parubi, ex-deputado do Pátria e um dos líderes da contestação, foi
proposto para secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa,
tendo como vice o líder do Setor Direito, Dmitro Yarosh.
A
confirmar-se a indicação de Iarosh, esta seria uma decisão
potencialmente polémica. A entrega de uma posição de destaque ao líder
de uma organização paramilitar de extrema-direita e que utilizou
abertamente meios violentos durante os protestos pode despertar
reservas, sobretudo nas regiões do Leste do país.
Outra nomeação
emanada das ruas foi a de Dmitro Bulatov, que esteve à frente do
movimento AutoMaidan, para a pasta da Juventude e Desporto. Bulatov foi
raptado no final de Janeiro, tendo reaparecido uma semana depois com
indícios de ferimentos graves. O ativista contou que foi levado por um
grupo de homens para uma mata, onde foi espancado e crucificado.
Democracia direta
A
rua soberana conseguiu, desde logo, adiar o anúncio da formação do
governo. Inicialmente previsto para terça-feira, a contestação da Maidan
em relação ao rumo que as negociações no Parlamento estavam a decorrer
falou mais alto e a nomeação passou para quarta-feira. E foi a rua a
indicar o método de escolha: a democracia direta, ao estilo da antiga
cidade-Estado de Esparta, como descreveu ao PÚBLICO um dos líderes dos
manifestantes, Andrei Parubi.
Não obstante as diferenças que
possam existir entre as realidades de uma cidade da Antiguidade de 25
mil habitantes, totalmente vocacionada para a guerra, e um país moderno
com uma população de 45 milhões, a justificação para o método referido
por Parubi está em sintonia com o sentimento dominante nas ruas de Kiev.
Em parte são os receios de que se repita o desenlace da Revolução
Laranja de 2004 – que acabou por substituir uma classe política dominada
pelos oligarcas por outra demasiado parecida – que dominam os anseios
pela democracia direta. Mas há também a necessidade de reconhecer que a
revolução da Maidan foi dirigida sobretudo pelas ruas, que não
hesitaram em apupar e criticar os líderes políticos e que precipitaram a
queda de Viktor Yanukovych.
Basta, contudo, olhar para os
desafios que os novos governantes da Ucrânia terão pela frente para se
concluir que juntar instabilidade governativa à situação crítica do país
podia ser o pior a acontecer neste momento. É o próprio Parubi que nota
ser possível que um governo seja aclamado pela Praça e, “horas depois”
venham 30 mil pessoas derrubá-lo.
Crise econômica, integração
europeia, relações com Moscou e manutenção da integridade territorial
serão os principais temas que vão ocupar o novo governo. Ao mesmo tempo
que têm de tentar redefinir a posição da Ucrânia no mundo, os novos
governantes têm que assegurar que não perdem a legitimidade que, por
agora, a rua parece confiar-lhes.
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