Editorial
Bruxelas devia ter exigido a Yanukovych que abandonasse o poder.
Kiev assistiu ontem ao dia mais mortífero desde o início dos protestos, com pelo menos várias dezenas de mortos.
A Comissão Europeia acordou e decidiu aplicar
sanções ao regime ucraniano, uma decisão que Moscou considerou um ato
de chantagem, ao mesmo tempo que apoiava o recurso à violência pelas
autoridades. Os desafios à legitimidade do poder central e as ameaças de
secessão multiplicam-se, do Ocidente pró-europeu à Crimeia pró-russa. A
única questão ainda sem resposta é saber se a Ucrânia já ultrapassou o
ponto de não retorno ou se ainda há uma esperança, por tênue que seja,
para o regresso ao diálogo.
Informações não confirmadas davam
conta de que o Presidente Yanukovych estaria disposto a aceitar eleições
antecipadas e a criação de um governo de unidade nacional. Mas
conhecendo os antecedentes de Yanukovych, há todas as razões para
desconfiar que ele apenas pretenda ganhar tempo e introduza nessa
negociação, se ela vier a acontecer, todo o tipo de expedientes que a
tornarão inútil.
Era preciso que o poder russo, que apoia e paga a
conta ao regime de Kiev, desse o mínimo sinal a favor de uma solução
negociada para o conflito. Mas de Moscou têm vindo mensagens em sentido
contrário.
Parece claro que Yanukovych nunca teria tomado a
decisão de atacar os manifestantes se não pensasse que a resposta
europeia ia ser tímida e ineficaz, como foi. Bruxelas acordou tarde e as
sanções terão muito pouco poder para intimidar o regime. Apenas o risco
de desagregação interna pode neste momento levar o Presidente a mudar
de posição. Ora, no ponto a que a crise chegou, a única saída possível
para Yanukovych era tomar a iniciativa de se demitir e sair da cena
política. Era isso, aliás, que Bruxelas devia ter exigido.
Ninguém
previu que o gigante ucraniano corria o risco de se desmoronar. Ou que a
esperança de democracia dos ucranianos teria merecido bem mais do que
anos e anos de indiferença da União Europeia.
Se a Ucrânia se partir, a Rússia ganhará sempre alguma coisa
Kiev é fundamental para o sucesso da união euroasiática de Putin.
Por isso, Moscou não deixará de interferir na política ucraniana.
A pergunta está na boca de quem olha para a escalada de violência sem
que se desenhe uma solução clara: é preciso que a Ucrânia se parta, com
o Leste simpatizante dos russos para um lado, e o Ocidente, onde a
maioria das pessoas fala ucraniano, para outro? A resposta, como tudo na
Ucrânia, depende também do fator russo.
Os alicerces de um país que só se tornou
independente após a queda da União Soviética estão a ser postos em causa
pelos protestos contra o regime de Viktor Yanukovych. A Ucrânia combina
territórios que foram do Império Austro-Húngaro, no Ocidente, com zonas
onde a maioria das pessoas falam russo, no Sul e no Leste.
As
tensões étnicas refletem-se na política: há uma coincidência quase
perfeita entre as zonas onde são maioritários os falantes de russo e os
resultados das últimas presidenciais, ganhas por Viktor Yanukovych.
Refletem-se também na onda de violência: no Sul e no Leste, há relatos
de que tituski, milícias privadas que apoiam a polícia, estão a
colaborar na repressão dos protestos. Nas províncias do Leste, que
faziam parte da República Socialista Soviética antes da II Guerra –
antes do resto de o território ter sido anexado pelo Exército Vermelho – Yanukovych, um filho da região, é menos impopular do que no resto do
país.
A especulação sobre as tensões foi reforçada com notícias de
que Vladislav Surkov, um conselheiro do Kremlin que lidou com as
regiões separatistas da Geórgia Abkházia e Ossétia do Sul foi visto em
Kiev e na Crimeia, diz a revista The Economist. E o presidente
do parlamento da Crimeia sugeriu que a região poderia separar-se do
resto do país. Ali está estacionada a frota russa do mar Negro e dois
terços dos habitantes são russos étnicos.
Em Moscou, traçam-se cenários de contingência prevendo a divisão do país, relata o jornal Christian Science Monitor.
Andrei IlIarionov, um ex-conselheiro econômico do Presidente Vladimir
Putin, enumerou as opções possíveis no seu blogue – e a fratura da
Ucrânia não é, de todo, algo que assuste os russos.
O cenário
preferido de Moscou, e que tentou forçar até agora, é a imposição de um
governo autoritário em Kiev, do gênero do de Vladimir Putin e
dependente em termos econômicos e políticos da Rússia. Uma guerra civil
poderia levar à divisão permanente da Ucrânia, com a parte pró-ocidental
a juntar-se à União Europeia, e a mais russificada a permanecer na
órbita de Moscou. Esta opção também é aceitável para o Kremlin, sugere Yllarionov. Finalmente, se a oposição sair a ganhar do atual confronto,
então a Rússia poderia usar a carta de uma Crimeia separatista para
gerar instabilidade na Ucrânia.
O que será certo, defende o historiador Timothy Snyder, professor em Yale (Estados Unidos) e autor do livro Terra Sangrenta – A Europa entre Hitler e Estaline
(Bertrand) em vários artigos publicados esta semana, é que Moscou não
está disposta a tolerar uma democracia em Kiev. É que a Ucrânia é
fundamental para realizar a sua pretendida união euroasiática com
ex-repúblicas da antiga URSS. Esse bloco econômico e político “tem de
ser constituído apenas por ditaduras, dado que qualquer sociedade livre
que a integrasse desafiaria a governação russa. Por isso, Moscou tem de
ter na Ucrânia um vizinho autoritário e fácil de manipular”.
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