Milhares de manifestantes não arredam pé da Maidan, território da oposição transformado em campo de batalha.
Kiev amanheceu com paz e um sol intenso a fazer derreter as
barricadas feitas de neve e sacos de gelo. Uma das tarefas dos
manifestantes, que agora dominam por completo a Praça da Independência e
arredores, é substituir a neve por sacos de pedras.
A atmosfera é de medo e desconfiança, mas também de
triunfo. Muitos estão vestidos como guerreiros, camuflado, capacete,
escudo metálico e bastão, ou mesmo colete à prova de bala. Vê-se que
permanecem alerta, como quem espera um ataque, mas também com a
confiança de quem consolidou o território.
A paisagem é de campo
de batalha, com os seus montes de detritos, pneus, pontos de armamento,
munições e extintores, tendas de lona verde e uma fuligem negra cobrindo
tudo e pairando sobre as carcaças de contentores e carros incendiados.
Mas
a rudeza está sobretudo nos rostos e nas mãos. Os que aqui passaram a
noite, defendendo as posições na praça depois de três dias de massacre
que fizeram mais de cem mortos, não parecem estudantes, intelectuais ou a
classe média ucraniana. Têm antes ar de camponeses pobres, operários ou
velhos rufias desempregados, um lumpen excedentário das
fábricas comunistas, do caciquismo do PCUS ou das campanhas do
Afeganistão. Gente que nunca teve um lugar na sociedade pós-soviética.
Enquanto
as negociações prosseguiam durante toda a noite, entre o Presidente e
representantes da oposição, mediadas pelos chefes das diplomacias alemã,
francesa e polaca, os manifestantes mantinham-se firmes na praça que
sentem já ser deles.
Todos os acessos à Maidan (a praça) estão
bloqueados com barricadas de mais de três metros de altura, delimitando
um perímetro agora muito mais vasto do que o ocupado pelos protestos
antes dos ataques policiais dos últimos dias. Os manifestantes alargaram
a zona “libertada” e organizaram os seus piquetes, barreiras e apoio
logístico.
Não há quaisquer forças policiais à vista, os
manifestantes dominam todo o centro de Kiev. Nas primeiras horas da
manhã milhares de pessoas já enchiam a Maidan, embora reinasse um
estranho silêncio, só quebrado pelos discursos dos ativistas que se
sucediam no palco, pelos cânticos de padres e velhos cossacos, ao lado
de uma estátua da Virgem com um manto branco e muitos quadros
representando o rosto de Cristo, entre velas acesas.
“Os polícias
são animais, porque atacaram uma tenda onde havia figuras e vários
objetos religiosos”, diz Alexander, 58 anos, ex-membro de um grupo de
forças especiais soviéticas. Refere-se ao assalto que as forças
policiais lançaram sobre os manifestantes da praça, provocando mais de
70 mortos. “Eles atacaram por ali”, aponta. “Mas os snipers
profissionais ficaram naqueles prédios, e era de lá que iam apontando
aos manifestantes que estavam no meio da praça, abatendo dezenas, um a
um.”
Alexander e o seu amigo Oleg, de 54 anos, passaram a noite na
Praça da Independência. Oleg é treinador profissional de luta
greco-romana, mas, por ter vindo para a praça, perdeu o emprego.
“Yanukovych é um fascista”, diz ele. “Anunciou um dia de luto pelos
mortos, fez hastear por todo o lado as bandeiras a meia-haste, e depois
lançou a polícia contra o povo, para provocar ainda mais mortos.
Ultrapassou todos os limites.”
Alexander e Oleg deslocaram-se para
a praça em protesto contra a morte dos primeiros estudantes que tinham
vindo manifestar-se pacificamente. “Os protestos iniciais eram
pacíficos, protagonizados por jovens. Só depois da repressão policial é
que nos tornamos também agressivos.” Oleg bate no peito com os nós dos
dedos, mostrando o colete à prova de bala, e indica o arranhão no
capacete provocado, segundo ele, pelo tiro de um sniper da polícia.
“A
nossa luta está a ser vitoriosa. A partir de agora, as coisas só podem
melhorar. Acho que é inevitável que o Presidente convoque eleições. O
Governo vai mudar”, diz Oleg, que se diz simpatizante dos partidos
radicais de direita. Alexander está menos confiante. O que está em jogo é
demasiado importante, pensa ele, para que o conflito se resolva de
forma simples. “Não é só Yanukovych. Ele é apenas uma marionete nas mãos
de Vladimir Putin.” Expõe uma algo intrincada teoria sobre a Ucrânia
ser o centro da Europa (Se virarmos o mapa ao contrário, Kiev fica no
lugar de Londres”), e conclui: “Não vai ser fácil. Putin é o homem mais
perigoso do mundo.”
Entre os manifestantes há, aliás, quem esteja
convencido de que as forças russas já estão infiltradas nas unidades
policiais da Ucrânia. “Ninguém sabe, neste país, mas eu tenho a certeza
de que há muitos russos misturados com a Berkut [a força especial da
polícia ucraniana]”, diz Sveta, 37 anos, que acaba de chegar de
Ternopil, uma cidade do Oeste da Ucrânia. Veio num dos cinco autocarros
que há dias trouxeram manifestantes para a Maidan. Deixou em casa dois
filhos e abandonou o emprego de cabeleireira. “Vim para dizer que é
preciso acabar com a violência.” Não se importou de perder o trabalho,
porque o salário não era suficiente para alimentar os filhos. Para ela
“o que é importante, neste momento, é a liberdade. Yanukovych é um
ditador, e é preciso livrar o país dele e da ditadura”.
Leo, 27
anos, georgiano e marido de Sveta, completa a visão dela com uma
perspectiva mais global e oblíqua: “Há uma conspiração da maçonaria e
dos milionários americanos para destruir a Ucrânia. Não acha?” E perante
tal evidência não é difícil concluir que a situação apenas tenda a
complicar-se: “Isto é o princípio de uma grande guerra entre a Ucrânia e
a Rússia.”
Sveta não acompanha o raciocínio, mas concorda que é
preciso fazer qualquer coisa: “Eu tenho muito medo de estar aqui. Mas é a
minha obrigação. Eu vim para dizer que as mulheres e as mães do
Ocidente da Ucrânia estão com a Maidan.”
Honremos cada gota de sangue e cada lágrima derramada por esse povo guerreiro que acreditou e mudou a história de seu País mais uma vez. Слава Україні! Героям Слава!
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