Editorial
A Crimeia, o referendo e o dia seguinte
16/03/2014 - 00:55
Na Crimeia joga-se o
futuro da mirífica união euro-asiática, mas também se pode jogar o seu fim.
No
referendo deste domingo na Crimeia não é preciso sondagens (aliás, negadas ou
falseadas) nem elaboradas análises para concluir que o resultado será
maioritariamente pró-russo. Uma revisão rápida dos acontecimentos na Ucrânia
após a queda de Yanukovych e a instalação de um novo e instável poder em Kiev
permite perceber que, desde essa data, a Rússia tudo fez para que a Crimeia se
encaminhasse para essa solução.
Mesmo que não usasse os seus exércitos, e usou-os; mesmo que
não calasse as vozes adversárias, e calou-as, nomeadamente nos meios de
comunicação social; mesmo que não ajudasse a espalhar o medo dos “nazis de
Kiev”, e ajudou; a Rússia teria todas as condições para ganhar maioritariamente
o referendo, pois ali dominou durante décadas. Do domínio tártaro, a Crimeia
passou em 1783 para o Império Russo de Catarina a Grande, ao qual foi anexada como parte da
província da Táurida; e no rescaldo da Revolução comunista de Outubro de 1917
foi integrada na União Soviética. O tempo em que esteve sob jugo nazi (agora
usado como fantasma contra o atual poder de Kiev), de 1941 a 1945, antecedeu a
sua entrega, em 1954, à República Socialista Soviética da Ucrânia, que era, à
data, parte integrante da URSS, onde dominava a Rússia. Há uma razão, entre
outras, para tal entrega: Krutschov, líder soviético à data, tinha nascido na
Ucrânia. Neste rol de anos, os tempos de autonomia da Crimeia são demasiado
breves para pesarem tanto quanto o domínio e a identificação russa: chegou a
proclamar a independência já depois do colapso do comunismo, em 1992, mas não
tardou a voltar a ser parte da Ucrânia, agora com estatuto de república autônoma.
A frota russa do mar Negro continuou lá, em Sebastopol, durante todo este
tempo. Mais precisamente desde a anexação de 1783.
A
interrogação de hoje não é, pois, sobre os votos, mas sobre o que fazer com
eles. Se, após a declaração de independência já votada (embora não aceite
internacionalmente) pelo parlamento da Crimeia o referendo der o “sim”
maioritariamente à integração na Federação Russa, o passo seguinte é que é
determinante: a aceitação oficial, ou não, pela Rússia, de tal pedido. Vladimir
Putin pode jogar com tal pedido e adiar a sua aceitação, para negociar o que
lhe aprouver com outras nações a partir dos resultados; ou pode pôr em marcha o
processo efetivo de secessão, desencadeando um verdadeiro sismo na ordem
geopolítica mundial. Uma e outra opção têm custos e não há muito tempo para
gerir soluções mais calculistas. Na Crimeia, incentivadas pelo poder russo, há
já vozes que falam numa espécie de “cruzada” para “libertar” regiões da Ucrânia
e isso, sim, poderá conduzir a conflitos armados pontuais ou a uma guerra em
maior escala. A Rússia, que detém por enquanto as rédeas de tal encarniçamento,
poderá travá-lo ou ampliá-lo à medida dos seus interesses, mas vai ter de tomar
uma decisão rápida quanto às suas ambições. Na Crimeia joga-se o futuro da
mirífica União Euro-asiática, mas também se pode jogar o seu fim. Começa hoje,
para todos, o dia seguinte.
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