A intervenção russa na Crimeia põe gravemente em causa um tratado internacional.
As movimentações militares russas na Crimeia, com
aprovação do Parlamento russo e a pedido do Presidente Vladimir Putin
são mais graves do que aparentam. É certo que há um passado que as
sustenta e um presente que finge dar-lhes cobertura. A Crimeia, hoje
parte da Ucrânia, já foi governada pela Rússia (no tempo do comunismo e
da URSS) até que Kruschov decidiu transferi-la para a República
Socialista da Ucrânia como gesto comemorativo da antiga união (ou
anexação) da Ucrânia à Rússia. Com a queda do comunismo, a Ucrânia
manteve a Crimeia sob sua jurisdição, apesar de ali continuar sediada,
por acordo mútuo, a frota russa do Mar Negro. Não foi o único acordo
firmado entre a Rússia e já independente Ucrânia: a Ucrânia
aceitou abdicar do seu arsenal nuclear (o terceiro maior do mundo) sob
compromisso, não só da Rússia mas também dos Estados Unidos e do Reino
Unido (no memorando de Budapeste), de serem respeitadas “a
independência, a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia”.
Ora
essas fronteiras incluíam a Crimeia, península com 26 mil quilómetros
quadrados e 1,9 milhões de habitantes, uma pequena parte da Ucrânia (com
603 mil quilómetros quadrados e 44,6 milhões de habitantes) mas,
segundo o memorando de Budapeste, parte inalienável do resto do país. À
semelhança do que se passou na infame invasão de Praga de Agosto de
1968, o avanço militar russo na Crimeia também invoca um pedido “de
dentro”, dos habitantes da Crimeia que receiam ser atacados pelas forças
de Kiev e do próprio presidente ucraniano Yanukovych, em lugar incerto
mas sob protecção clara da Rússia. Mas, ao pôr em causa as fronteiras do
país, pondo a Crimeia sob jurisdição, ainda que provisória, da Rússia,
põe também em causa um tratado internacional que envolve, como já si
disse, duas potências ocidentais: os EUA e o Reino Unido. Este cenário,
se os russos levarem por diante a intervenção e se fosse levado à letra o
texto do acordo, seria pretexto para uma guerra à escala internacional,
na qual os contendores procurariam aliados naturais ou de conveniência e
poderia desembocar num desastre.
Já houve uma guerra da Crimeia,
envolvendo a Rússia, a Inglaterra, a França e os impérios Otomano (hoje
Turquia) e Austríaco. Durou dois anos, de 1854 a 1856, e no final o czar
Alexandre II, da Rússia, ficou proibido de manter forças navais no Mar
Negro. Cem anos depois, o império comunista que sucedeu ao dos czares já
instalara no Mar Negro a sua frota. E a Rússia que se ergueu do
pós-Perestroika ali as manteve, na Crimeia, onde hoje se medem forças e
se arrisca um conflito sério. As elites russas conhecem a sua história e não
repetirão erros do passado. Logo, uma guerra da Crimeia não terá lugar.
Mas há coisas o mais certeiro racionalismo não pode prever. E o desvario
humano é uma delas.
Parabéns pelo trabalho!Deus abençoe!
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