sábado, 1 de março de 2014

SINAIS DE GUERRA NO MAR NEGRO

A intervenção russa na Crimeia põe gravemente em causa um tratado internacional.

As movimentações militares russas na Crimeia, com aprovação do Parlamento russo e a pedido do Presidente Vladimir Putin são mais graves do que aparentam. É certo que há um passado que as sustenta e um presente que finge dar-lhes cobertura. A Crimeia, hoje parte da Ucrânia, já foi governada pela Rússia (no tempo do comunismo e da URSS) até que Kruschov decidiu transferi-la para a República Socialista da Ucrânia como gesto comemorativo da antiga união (ou anexação) da Ucrânia à Rússia. Com a queda do comunismo, a Ucrânia manteve a Crimeia sob sua jurisdição, apesar de ali continuar sediada, por acordo mútuo, a frota russa do Mar Negro. Não foi o único acordo firmado entre a Rússia e já independente Ucrânia: a Ucrânia aceitou abdicar do seu arsenal nuclear (o terceiro maior do mundo) sob compromisso, não só da Rússia mas também dos Estados Unidos e do Reino Unido (no memorando de Budapeste), de serem respeitadas “a independência, a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia”.

Ora essas fronteiras incluíam a Crimeia, península com 26 mil quilómetros quadrados e 1,9 milhões de habitantes, uma pequena parte da Ucrânia (com 603 mil quilómetros quadrados e 44,6 milhões de habitantes) mas, segundo o memorando de Budapeste, parte inalienável do resto do país. À semelhança do que se passou na infame invasão de Praga de Agosto de 1968, o avanço militar russo na Crimeia também invoca um pedido “de dentro”, dos habitantes da Crimeia que receiam ser atacados pelas forças de Kiev e do próprio presidente ucraniano Yanukovych, em lugar incerto mas sob protecção clara da Rússia. Mas, ao pôr em causa as fronteiras do país, pondo a Crimeia sob jurisdição, ainda que provisória, da Rússia, põe também em causa um tratado internacional que envolve, como já si disse, duas potências ocidentais: os EUA e o Reino Unido. Este cenário, se os russos levarem por diante a intervenção e se fosse levado à letra o texto do acordo, seria pretexto para uma guerra à escala internacional, na qual os contendores procurariam aliados naturais ou de conveniência e poderia desembocar num desastre.

Já houve uma guerra da Crimeia, envolvendo a Rússia, a Inglaterra, a França e os impérios Otomano (hoje Turquia) e Austríaco. Durou dois anos, de 1854 a 1856, e no final o czar Alexandre II, da Rússia, ficou proibido de manter forças navais no Mar Negro. Cem anos depois, o império comunista que sucedeu ao dos czares já instalara no Mar Negro a sua frota. E a Rússia que se ergueu do pós-Perestroika ali as manteve, na Crimeia, onde hoje se medem forças e se arrisca um conflito sério. As elites russas conhecem a sua história e não repetirão erros do passado. Logo, uma guerra da Crimeia não terá lugar. Mas há coisas o mais certeiro racionalismo não pode prever. E o desvario humano é uma delas.

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