Bluff de Putin arrisca isolamento internacional da Rússia
Depois das divisões iniciais, o Ocidente alinhou-se e prepara
sanções mais fortes contra a Rússia, caso a anexação da Crimeia vá em
frente. Moscou pode ver-se afastada das decisões internacionais.
O que fará Vladimir Putin com a Crimeia? Maxim Shemetov/Reuters
As fronteiras da Europa voltam a ser desenhadas este domingo, quando
os habitantes da Crimeia se pronunciarem sobre a integração da península
na Rússia. Mas o referendo está longe de ser um simples assunto interno
da pequena península do Mar Negro. Após a contagem dos votos, a ordem
geopolítica mundial pode alterar-se profundamente num espaço de semanas.
O resultado do referendo é largamente antecipado,
numa região cuja maioria da população tem origem russa e onde o
saudosismo em relação aos tempos da União Soviética é grande. Mas o que
fará Vladimir Putin com a Crimeia? O líder russo tem surpreendido a
generalidade dos observadores e a velocidade do processo na Ucrânia
torna qualquer previsão arriscada. Uma das apostas de Putin poderá ser a
de utilizar a Crimeia como trunfo negocial para obter vantagens no
futuro político da Ucrânia.
Esta estratégia passaria por
“pressionar o governo de Kiev a aceitar um modelo de federalização da
Ucrânia, o que iria permitir que as regiões do Leste desenvolvessem
relações mais próximas da Rússia”, explica ao PÚBLICO John Lough, do
Programa Rússia e Eurásia do think-tank britânico Chatham
House. “Isto iria colocar a Ucrânia numa situação em que está desunida e
não poderia funcionar normalmente como país”, acrescenta.
Putin
poderia aproveitar a janela de oportunidade dada pelos EUA na
sexta-feira, que demonstraram abertura para aguardar pela anexação
efetiva da Crimeia pela Rússia. Moscou aceita recuar na sua intenção,
evitando sanções mais pesadas, e pode negociar a federalização da
Ucrânia.
Mas o bluff de Putin pode vir a revelar-se
demasiado arriscado. “As ações da Rússia na Crimeia começaram a
consolidar-se de uma forma nunca antes vista”, nota Lough. O problema
para Moscou é a expectativa já criada e um potencial recuo pode ser
visto como uma demonstração de fraqueza do líder russo, ideia que
desagrada bastante a Putin. John Lough questiona se haverá ainda um
“botão de desligar”, para responder de imediato: “Parece-me que já se
avançou demais.”
Resultado anunciado
Apesar da previsibilidade do desfecho da consulta da Crimeia, as autoridades pró-russas limitaram a margem para surpresas. A consulta é feita através de duas perguntas. A primeira refere-se diretamente à anexação do território pela Rússia: “É a favor da reunificação da Crimeia com a Rússia como parte da Federação Russa?”. A segunda pergunta é menos direta: “É a favor da restaurar a Constituição de 1992 e o estatuto da Crimeia como parte da Ucrânia?”.
Apesar da previsibilidade do desfecho da consulta da Crimeia, as autoridades pró-russas limitaram a margem para surpresas. A consulta é feita através de duas perguntas. A primeira refere-se diretamente à anexação do território pela Rússia: “É a favor da reunificação da Crimeia com a Rússia como parte da Federação Russa?”. A segunda pergunta é menos direta: “É a favor da restaurar a Constituição de 1992 e o estatuto da Crimeia como parte da Ucrânia?”.
O retorno à Constituição de 1992
confere uma autonomia alargada à Crimeia, conferindo o poder às
autoridades regionais de integrarem a realidade territorial que
desejarem. Na prática, a segunda opção permite que a Crimeia seja
absorvida pela Rússia, o que significa que o referendo não dá voz à
população que defenda a manutenção do status quo.
Perante
a inevitabilidade da vitória da integração da Crimeia, o processo será
muito rápido. Depois do referendo, as duas câmaras legislativas russas
vão votar a anexação do território e irá caber ao Presidente a
ratificação final. “Estas três ações devem demorar no máximo duas
semanas e no final deste período já deveremos ter uma Constituição”,
calculou recentemente o presidente do Parlamento regional, Volodimir
Konstantinov, em declarações à agência estatal russa RIA Novosti. A Duma
(parlamento russo) tem marcado para dia 21 na sua agenda oficial a
discussão para a integração de um território estrangeiro, escassos cinco
dias depois do referendo na península do Mar Negro.
Ocidente dividido
Pouco mais de uma semana se passou entre o pedido formal do Parlamento da Crimeia para a anexação do território, a 6 de Março, e o referendo deste domingo. Durante esse período a diplomacia mundial pôs-se em acção numa luta contra o tempo para evitar a marcha da região em direção a Moscou. Cada dia que passou simbolizava mais um falhanço das negociações, tornando-se cada vez mais numa conversa de surdos.
Pouco mais de uma semana se passou entre o pedido formal do Parlamento da Crimeia para a anexação do território, a 6 de Março, e o referendo deste domingo. Durante esse período a diplomacia mundial pôs-se em acção numa luta contra o tempo para evitar a marcha da região em direção a Moscou. Cada dia que passou simbolizava mais um falhanço das negociações, tornando-se cada vez mais numa conversa de surdos.
De
início, tanto a Europa como os Estados Unidos divergiram entre si na
forma como abordar Putin. No seio da União Europeia, sempre fustigada
pelas demoras e hesitações nos seus processos decisórios, desenharam-se
duas linhas de ação. Os Estados do Leste, encabeçados pela Polónia,
pediam sanções fortes contra Moscou, motivados pelos receios de que a
vitória na Crimeia possa lançar Putin em ofensivas semelhantes junto dos
seus países. Por uma diferente estratégia alinhavam outros líderes
europeus – com a chanceler alemã, Angela Merkel, na liderança – que
mostravam preferência por sanções mais leves e por um discurso menos
penalizador em relação a Putin.
“A opinião convencional até agora
foi de que os alemães seriam guiados sobretudo pelos seus interesses
comerciais”, observa John Lough. A Alemanha importa um terço do seu
petróleo e gás da Rússia e há mais de seis mil empresas alemãs com
negócios no país, de acordo com a Reuters. O Reino Unido também apareceu
como partidário da abordagem mais cautelosa, alimentada por receios do
impacto negativo que as sanções poderiam acarretar. Só na praça
financeira de Londres estão cotadas setenta grandes empresas russas de
hidrocarbonetos, como a Gazprom, a Rosneft ou a Lukoil, para além de que
a capital britânica é dos locais mais escolhidos pelos oligarcas russos
comprarem casas luxuosas.
Em Washington, a gestão do Presidente
norte-americano, Barack Obama, foi duramente criticada. O republicano
John McCain afirmou que a crise na Ucrânia é “o resultado de uma
política externa ineficaz em que já ninguém acredita na força da
América”. No início do seu mandato, Obama privilegiou uma política de
“recomeço” (reset) nas relações com a Rússia, que hoje se encontra profundamente comprometida.
Sanções no horizonte
A velocidade vertiginosa dos acontecimentos na Crimeia – no espaço de duas semanas, milícias pró-russas tomaram os principais edifícios administrativos e bases militares, colocaram no poder autoridades pró-Moscou e foi marcado um referendo – veio pôr o Ocidente em estado de alerta e as posições passaram a ter maior coordenação nos últimos dias.
A velocidade vertiginosa dos acontecimentos na Crimeia – no espaço de duas semanas, milícias pró-russas tomaram os principais edifícios administrativos e bases militares, colocaram no poder autoridades pró-Moscou e foi marcado um referendo – veio pôr o Ocidente em estado de alerta e as posições passaram a ter maior coordenação nos últimos dias.
Apesar de as negociações terem continuado, sobretudo entre
os ministros dos Negócios Estrangeiros dos EUA, John Kerry, e russo,
Sergei Lavrov, o discurso dos líderes ocidentais endureceu. Obama
recebeu o primeiro-ministro interino da Ucrânia, Arseni Yatseniuk, na
Casa Branca, e afirmou estar do lado das novas autoridades, que Moscou
se recusa a reconhecer. De Yatseniuk recebeu um pedido de ajuda militar
para o país que ficou, de momento, suspenso.
Mas foi da Alemanha
que veio o aviso mais duro. Num discurso surpreendentemente inflamado e
emotivo, Merkel alertou, na quinta-feira, para a iminência de uma
“catástrofe” caso a Rússia mantenha o apoio ao referendo da Crimeia.
“Isso não iria mudar apenas a relação da UE com a Rússia, iria causar
danos massivos à Rússia, econômica e politicamente”, disse a chanceler
alemã. As declarações de Merkel indicam que “a Alemanha deverá tomar uma
posição forte e impor sanções à Rússia”, nota o especialista da Chatham
House, que diz serem “um problema sério” para Moscou.
Merkel é
vista como a principal interlocutora europeia de Putin, com quem mantém
relações diplomáticas há 14 anos, para além de ambos dominarem
perfeitamente os idiomas um do outro. “Nem sempre foi [uma relação]
fácil, mas Putin conhece Merkel melhor e respeita-a mais do que aos
outros líderes”, afirmou à AFP o presidente do Fórum Alemão-Russo em
Berlim, Alexander Rahr. A Alemanha chegou mesmo a apoiar as posições
russas, mesmo quando contrariavam a linha ocidental. Foi o caso do veto
de Merkel à entrada da Ucrânia e da Geórgia na NATO, durante a cimeira
de Bucareste em 2008.
Contudo, nem a “relação especial” entre os
dois líderes deverá dar frutos desta vez e a posição forte assumida por
Merkel nos últimos dias reflecte isso mesmo. “Ela tem uma relação com
ele, mas há limites para o impacto que isso possa ter”, nota Stefan
Meister, do Conselho Europeu para as Relações Internacionais. “Putin tem
uma estratégia muito clara em relação à Crimeia e não será persuadido
pela Alemanha”, acrescentou o analista.
Isolamento russo
Na segunda-feira, os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE vão reunir em Bruxelas para decidir se avançam para o próximo pacote de sanções contra a Rússia, que podem passar pelo congelamento de bens e pela suspensão de vistos de responsáveis russos. Mas mesmo sem a sua aplicação efectiva, a economia russa já está a sofrer com a incursão na Crimeia. A Goldman Sachs reviu em baixa as perspectivas de crescimento econômico da Rússia, passando de 3 para 1%, e a bolsa de Moscovo atingiu o valor mais baixo dos últimos quatro anos.
Na segunda-feira, os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE vão reunir em Bruxelas para decidir se avançam para o próximo pacote de sanções contra a Rússia, que podem passar pelo congelamento de bens e pela suspensão de vistos de responsáveis russos. Mas mesmo sem a sua aplicação efectiva, a economia russa já está a sofrer com a incursão na Crimeia. A Goldman Sachs reviu em baixa as perspectivas de crescimento econômico da Rússia, passando de 3 para 1%, e a bolsa de Moscovo atingiu o valor mais baixo dos últimos quatro anos.
Mais forte do que
qualquer sanção econômica poderá ser o impacto para o relevo da Rússia
na cena internacional. Os países ocidentais “podem muito provavelmente
concluir que Moscou é um parceiro duvidoso, que colocou em causa o
quadro de segurança, não só na Ucrânia mas na região”, nota John Lough.
“A questão que se coloca é ‘quão valiosa é a cooperação que tínhamos com
a Rússia até agora, e será que ainda precisamos dela?’.”
Em risco
podem estar importantes negociações que sentam à mesa a Rússia e o
Ocidente, tais como o grupo 5+1 para o desarmamento nuclear do Irão ou
as conversações de paz sobre a Síria. O caminho a tomar pela Rússia
poderá vir a ser a grande dor de cabeça dos líderes ocidentais nos
próximos anos.
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